A Garganta da Serpente
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Pai, quem te pediu alguma coisa?

(Henrique Rishi)

Recentemente, recebi em minha caixa de e-mails um texto da emérita escritora Elaine Brum que está circulando pela rede. O título é "Meu Filho, você não merece nada".

Em resumo o texto procura criticar a postura de alguns pais que superprotegem os filhos tornando-os praticamente incapazes de enfrentar a vida dita como real, ao mesmo tempo que critica a postura inerte dos filhos diante da vida. Instigado pela minha natureza contestadora resolvi enviar meu parecer sobre o assunto.

Para quem não conhece o texto acesse . Aqui postarei somente minha resposta. A começar, naturalmente, pelo título.

Acho que o primeiro problema das pessoas que falam dos jovens de hoje, é sua idade. Com isso não quero dizer unicamente que são velhos (se bem que queira dizer isso também) mas que o distanciamento de uma geração (ou mais) não os permite ter uma visão mais íntima do que acontece realmente com os jovens, deixando-os na periferia, no que acontece com os pais dos jovens.

Não dá pra comparar uma geração com a outra. A nossa geração é feita de indivíduos que naturalmente possuem uma visão mais pessimista do mundo, o futuro para nós simplesmente é um vazio, muitas vezes não existe. Você diz que somos criados a partir da visão da felicidade e não da dor? Que felicidade? Você já pegou um adolescente e perguntou pra ele se ele se sente feliz? Não nos sentimos assim. Não temos projetos. Só vemos o agora.

Ao mesmo tempo vislumbramos muito mais possibilidades de atividade. Temos gostos variados. Somos uma geração de filhos muito protegidos, com pais que se preocupavam muito com nossa segurança, isso acho que falando na maior parte da classe média, pelo menos.

Mas sim, conhecemos a dor. A dor da falta de sentido, da incoerência. E somos muito, mas muito mais criativos do que os mais velhos pensam para contornarmos isso. O mero fato de não buscarmos a felicidade do mesmo modo, ou seja, sendo "bem-sucedido", não quer dizer que estejamos de braços para o ar, encostados no sofá.

Recebemos mais do que nossos pais? Nossos pais poluíram e degradaram o mundo que nos entregaram. E temos de trabalhar muito, muito mais que vocês tiveram, pelo cuidado com o planeta.

É natural que queiramos uma "continuidade de nossas casas". Se você visse, por exemplo, o estudo de especialistas do IESE, veria que os novos pretendentes ao mercado de trabalho esperam como remuneração manter um elevado padrão de vida, e que o problema não está em absoluto nesta visão, que é conseqüência da própria influência da informação e da mídia em suas vidas (e não só), mas sim na falta de solução para aprender a atrair, reter e gerenciar estes novos "empregados".

O que choca àqueles das gerações anteriores (e falo mesmo daqueles que nasceram antes de meados dos anos 80, esses já fazem parte de uma geração anterior à nossa), é que essa coisa de "bacana é o cara que passou a noite na balada", se trata do fato de que somos muito mais seguros de nós mesmos, e do que queremos - o que nos leva muitas vezes a abrir mão de algo mais "difícil", que tem a promessa de nos oferecer vantagens "futuramente".

Nossa angústia é mais uma impaciência. Somos uma geração de resultados, não de processos. Nós naturalmente não temos a mesma paciência para o aprendizado da vida. Somos mais imediatistas, fruto de uma geração baseada na rapidez das tecnologias e da informação. Em geral não estamos felizes com nenhuma instituição de ensino. Nem com nossa vida pessoal

É bom lembrar que estes conceitos de valor e motivação pertencem a esta geração que vem mais ou menos da metade dos anos sessenta e para no começo dos anos oitenta. Mesmo a idéia de trocar a concepção mecanicista de trabalho por uma mais aberta, onde o trabalho não é uma forma de sobrevivência, mas fonte de satisfação pessoal, ainda não se aplica a nós. Neste mesmo estudo que citei, o discurso de quem procura emprego na nossa geração é mais ou menos assim "Olhe, diga o que eu tenho de fazer não queira saber como vou fazer, respeite minha e vida e me informe quanto vou ganhar". Essa coisa de dizer que não queremos ralar é unicamente certa resistência de não abrir mão de nossa qualidade de vida pela mesma concepção de "independência" das gerações anteriores. Essa concepção é baseada principalmente na idéia de que a independência vem com o sucesso, com a conquista de uma renda independente, com um bom diploma, curso técnico, ou qualquer espécie de graduação e um bom emprego. Mas qualquer economista sabe que estabilidade financeira vem com economia, ou seja, o principal que devemos adquirir antes mesmo de ter uma renda própria, é saber poupar, saber gastar menos do que ganhamos, é saber fazer uso correto dos nossos recursos. Isso não é uma aula que temos na escola, e não parece ser o discurso das gerações anteriores, diretamente voltadas para o consumo e o descaso ambiental. O erro dos jovens de hoje não é nem tanto ansiarem por uma estrutura que os garanta a comodidade que já possuem, mas não aprenderem a poupar e viver de maneira mais simples, com a mesma comodidade.

Nossas redes de amizade é o que mais contam. Para nós, estar sem amigos, é ser um perdedor, o que talvez não possa ser compreendido por quem foi criado numa geração onde emulava-se a competição individualista (o que aliás repudiamos). Nós somos a geração do coletivo, do movimento social, das ONGs, das preocupações ecológicas, da consciência global. Entendemos como somos fracos como indivíduos. Não pensem que vocês sabem do que se trata a nossa angústia.

Isso é outro ponto. Enquanto a geração anterior entendia a vida profissional do ponto de vista da competência, o nosso modo de ver as coisas se baseia no coletivismo, ou seja, você é bom a partir do momento que aquilo que você faz atinge outras pessoas e é capaz de interagir com elas. Em resumo, não se pode esperar de duas gerações diferentes a mesma atitude profissional e pessoal diante da vida.

O grande impasse com o qual nos deparamos aqui, cara Eliane, é que nós ganhamos tudo, mas não ganhamos nada. Passamos a vida inteira recebendo de nossos pais e na hora do vamos ver, não serve para o que vislumbramos. Moral da história: no fundo a maior parte das coisas que nossos pais nos deram, não era do que carecíamos. Então, como dizer que somos abastados com o que ganhamos? Aceitamos o que nos deram porque é o que precisamos para sobreviver neste mundo. Mas e para construir o nosso?

Somos pobres disso. Não pobres de experiência de vida. Nossa experiência é outra. E todo o jovem, em todas as gerações, é inexperiente. Não é só a nossa que é torta. Somos pobres porque nada do que carecemos está à nossa disposição. Temos que cavar por nós mesmos. Muitos não seguram o tranco. A depressão é a manifestação mais divulgada dos efeitos do nosso rito de passagem. No século 19 ao invés de chamarem de depressão chamariam de romantismo. É comum a genialidade ultrapassar o senso prático, principalmente na fase de transição. Vide Werter. E vide, de Tezza, o Trapo, Werter dos nossos tempos. Dos nossos tempos não. Da geração de 70 e 80.

Falo de um rito de passagem. Mas qual é o nosso rito de passagem. Para as gerações anteriores era o ingresso numa faculdade, o primeiro emprego, enfim, o reconhecimento de todos os compromissos de uma vida dita "adulta". Qual é o nosso? Só posso dizer que ele é mais ou menos o reconhecimento da ilusão. E aí segura peão.

Não acredite que um jovem que está na faculdade e sai para beber está fazendo isso porque é um "feliz". Ele quer esquecer.

Ninguém é feliz neste mundo e esta é a primeira lição, a primeira e maior lição que nenhum de vocês tiveram. Não queiram nos dizer como alguém deve sair de casa com esta visão de mundo na cabeça.

Outra coisa: para nós, viver não é para os insistentes, viver é para os solidários, os integrados, os sociáveis, os amigáveis. Os insistentes, para nós, são os burros que não entenderam que quando você está dando muita cabeçada, o melhor é contornar e pedir ajuda. Não ter pra quem pedir ajuda é que é estar no brejo. Em geral recorremos primeiro para os pais, mas você mesma já viu o resultado...

Alguns de nós estão com trinta anos e ainda estão na casa dos pais. Isso é praticamente um fracasso diante da visão média da sociedade.

Porque essa geração é assim? Bem, cabe fazer um estudo mais abrangente e mais aprofundado, e não ficar formulando opiniões muito limitadas a respeito do assunto, que, aliás, ultrapassa e muito a concepção de vida e de mundo dos nossos antepassados e de nós mesmos. É preciso entender o mundo como um movimento contínuo de cenário e de atores. Teremos que recorrer a outros "filósofos" além do Garrincha.

Nossos pais nos protegem de todos os perrengues, você diz. Mas não é verdade.

Eles se tornam mais um fardo para nós, que acabamos por nos sentir culpados pelo modo angustiante com o qual eles querem que acreditemos na realização pessoal, no sucesso na felicidade e etc... e ficamos mais pressionados, e mais infelizes. E mais nossos pais se agitam, e o ciclo não tem fim.

Nossos pais querem que sejamos "felizes", porque eles mesmos acreditam nessa idéia absurda, nessa doença conspiratória. Vem da geração deles o crédito da felicidade, não da nossa. ELES querem que sejamos felizes, nós só queremos ser deixados em paz.

E seria um ideal muito utópico esperar que um dia nossos pais venham a dizer "te vira meu filho, que a briga é tua" já que a maior preocupação deles é dizer como é a vida e como ela é dura, e assim e assado, e como temos de estudar e trabalhar e...enfim, você pode achar que seu discurso é algo muito diferente do que eles dizem, mas no fim das contas é a mesma coisa dita para motivar os nossos pais a fazerem a mesma coisa que já vêm fazendo.

Nós sabemos que nossos pais mentiram. Deixem-nos chorar. Ora, vão cuidar da vida vocês. Por que afirma-se tanto que é importante encarar o sofrimento e não aceita-se o choro, o grito, a revolta? Sim, reclamamos, somos muito sensíveis à injustiça, isso por acaso é um defeito? Quando o tempo todo querem que sejamos racionais, como poderemos encontrar o que realmente somos se não formos ao menos um pouco irracionais? Não nos calem com antidepressivos, mas também não venham com essa moralidade de que a vida é dura, você tem que segurar o tranco. Vão tomar no naquele lugar. Se é para nos virarmos não dêem pitaco. É melhor mesmo aumentar o volume da TV, mas só se vocês pais gostarem de volume alto. Sintam-se à vontade. Ficaremos melhor passando despercebidos. Respeitamos e exigimos nosso isolamento das gerações anteriores. Não queremos interferência. Vocês já têm a vida de vocês. Agora queremos a nossa.

Para terminar, um poema de um cara que ninguém que fala de filhos deveria esquecer:

Uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."
E ele falou:
Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável.

(Kalil Gibrant)

  • Publicado em: 16/05/2017
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