Exercer a crítica, afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece
igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, corno para a
representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar a
multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos
esclarecidos, é exercida pelos incompetentes.
São óbvias as consequências de uma tal situação. As musas, privadas de um farol
seguro, correm o risco de naufragar nos mares sempre desconhecidos da publicidade. O
erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições,
só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é também o menos decisivo.
O poeta oscilará entre as sentenças mal concebidas do crítico, e os arestos caprichosos
da opinião; nenhuma luz, nenhum conselho, nada lhe mostrará o caminho que deve seguir,
— e a morte próxima será o prêmio definitivo das suas fadigas e das suas lutas.
Chegamos já a estas tristes consequências? Não quero proferir juízo, que seria temerário,
mas qualquer pode notar com que largos intervalos aparecem as boas obras, e como são
raras as publicações seladas por um talento verdadeiro. Quereis mudar esta situação
aflitiva? Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e
nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por
vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, - será esse o
meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os
talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, - essas três chagas da
crítica de hoje, - pondo em lugar deles, a sinceridade, a solicitude
e a justiça, - é só assim que teremos uma grande literatura.
É claro que a essa crítica, destinada a produzir tamanha reforma, deve-se exigir as
condições e as virtudes que faltam a crítica dominante; - e para melhor definir o meu
pensamento, eis o que eu exigiria no crítico do futuro.
O crítico atualmente aceito não prima pela ciência literária; creio que até que uma das
condições para desempenhar tão curioso papel, é despreocupar-se de todas as questões que entendem com o domínio da imaginação. Outra, entretanto, deve ser a marcha do
crítico; longe de resumir em duas linhas, - cujas frases já o tipógrafo as tem feitas, - o
julgamento de uma obra, cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o
sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver em fim até que ponto a imaginação e a
verdade conferenciaram para aquela produção. Deste modo as conclusões do crítico
servem tanto à obra concluída, como a obra em embrião. Crítica é análise, - a crítica que
não analisa é a mais cômoda, mas não pode pretender a ser fecunda.
Para realizar tão multiplicadas obrigações, compreendo eu que não basta uma leitura
superficiais dos autores, nem a simples reprodução das impressões de um momento;
pode-se, é verdade, fascinar o público, mediante uma fraseologia que se emprega sempre
para louvar ou deprimir; mas no ânimo daqueles para quem uma frase nada vale, desde
que não traz uma ideia, - esse meio é impotente, e essa crítica negativa.
Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas
condições principais para escrever a crítica. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em
vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o
da adulação ou da simpatia, procure produzir unicamente os juízos da sua consciência.
Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus
interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção e a sua convicção,
deve formar-se tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas.
Pouco lhe deve importar as simpatias ou antipatias dos outros; um sorriso complacente,
se pode ser recebido e retribuído com outro, não deve determinar, como a espada de
Breno, o peso da balança; acima de tudo, dos sorrisos e das desatenções, está o dever
de dizer a verdade, e em caso de dúvida, antes calá-la, que negá-la.
Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão
de rosas, e se o é, é-o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade.
Das duas condições indicadas acima decorrem naturalmente outras, tão necessárias
como elas, ao exercício da crítica. A coerência é uma dessas condições, e só pode
praticá-la o crítico verdadeiramente consciencioso. Com efeito, se o crítico, na
manifestação dos seus juízos, deixa-se impressionar por circunstâncias estranhas às
questões literárias, há de cair frequentemente na contradição, e os seus juízos de hoje
serão a condenação das suas aspirações de ontem. Sem uma coerência perfeita, as suas
sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo-se à condição de
ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os caprichos, o crítico fica
sendo unicamente o oráculo de seus aduladores.
O crítico deve ser independente, - independente em tudo e de tudo, - independente da
vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias,
nem de cegas adorações; mas também deve ser uma luta constante contra todas essas
dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem deixar de perverter a
opinião. Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial, - armada contra a
insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários, - e neste ponto,
a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do crítico, seria aquela expressão de
Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: - "É levantando as
estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas próprias estátuas".
A tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a cegueira é um
elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as
inteligências; mas a intolerância nada produz que tenha as condições de fecundo e
duradouro.
É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as
preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as
obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa
moderna inspira, do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras dos
românticos e dos realistas, tão inteira justiça, como estes devem fazer às boas obras
daqueles. Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano, pode haver uma
verdade na obra de um realista. A minha admiração pelo Cid não me fez obscurecer as
belezas de Ruy Blas. A crítica, que, para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma proscrição em massa, seria a crítica da destruição e do aniquilamento.
Será necessário dizer que uma das condições da crítica deve ser a urbanidade? Uma
crítica que, para a expressão das suas ideias, só encontra fórmulas ásperas, pode perder
as esperanças de influir e dirigir. Para muita gente será esse o meio de provar
independência; mas os olhos experimentados farão muito pouco caso de uma
independência que precisa sair da sala para mostrar que existe.
Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer, não há outro
que seja tão eficaz. Se a delicadeza das maneiras é um dever de todo homem que vive
entre homens, com mais razão é um dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por
excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê-la ao que há de mais
susceptível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre-lhe, a ele sobretudo, não
esquecer nunca esse dever. De outro modo, o crítico passará o limite da discussão
literária, para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das ideias, em
campo de palavras, de doestos, de recriminações, — se acaso uma boa dose de sangue
frio, da parte do adversário, não tornar impossível esse espetáculo indecente.
Tais são as condições, as virtudes e os deveres dos que se destinam a analise literária;
se a tudo isto juntarmos uma última virtude, a virtude da perseverança, teremos
completado o ideal do crítico.
Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, escarná-lo, aprofundá-lo, até
encontrar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na
consciência e a convicção nos lábios, adotar uma regra definida, a fim de não cair na
contradição, ser franco sem aspereza, independente sem injustiças tarefa nobre é essa
que mais de um talento podia desempenhar, se se quisesse aplicar exclusivamente a ela.
No meu entender é mesmo uma obrigação de todo aquele que se sentir com força de
tentar a grande obra da análise conscienciosa, solícita e verdadeira.
Os resultados seriam imediatos e fecundos. As obras que passassem do cérebro do
poeta para a consciência do crítico, em vez de serem tratadas conforme o seu bom ou
mau humor, seriam sujeitas a uma análise severa, mas útil; o conselho substituiria a
intolerância, a fórmula urbana entraria no lugar da expressão rústica, — a imparcialidade
daria leis, no lugar do capricho, da indiferença e da superficialidade.
Isto pelo que respeita aos poetas. Quanto à crítica dominante, como não se poderia
sustentar por si, - ou procuraria entrar na estrada dos deveres difíceis, mas nobres, — ou
ficaria reduzida a conquistar de si própria, os aplausos que lhe negassem as inteligências
esclarecidas.
Se esta reforma, que eu sonho, sem esperanças de uma realização próxima, viesse
mudar a situação atual das coisas, que talentos novos! que novos escritos! que estímulos! que ambições! A arte tomaria novos aspectos aos olhos dos estreantes; as leis poéticas,
— tão confundidas hoje, e tão caprichosas, — seriam as únicas pelas quais se aferisse o
merecimento das produções, — e a literatura alimentada ainda hoje por algum talento
corajoso e bem encaminhado, — veria nascer para ela um dia de florescimento e
prosperidade. Tudo isso depende da crítica. Que ela apareça, convencida e resoluta, — e
a sua obra será a melhor obra dos nossos dias.