"Um sentido mais alto me sussura: -Há que
aguardar muitos outros sinais, que eles virão
como proezas que entristecem ou alegrem
o espírito".
Ascendino Leite - Um Ano No Outono
Jorge Luis Borges está na moda, como sempre. Aliás, nunca saiu,
diga-se de passagem, porque o que é bom é bom para sempre. Dura.
Sempre há um rico motivo para o relembramos, por qualquer desculpa-data
que o enseja. Jorge Luis Borges existiu ou foi uma invenção meio
Piazzola-Gardel?
Fruto da imaginação austral do Argentino normalmente meio que
gabola pra nossa inveja camoniana?
Jorge Luis Borges se não existisse teria que ser inventado, como um mito.
Era um Maradona a seco que fazia com a mão e a cabeça, as fintas
entro de um território muito além da imaginação.
Já pensou?
Gênio? Louco? Freudiano. Lendas correm sobre ele, viçam. Sobre
o que ele não disse e também o que poderia dizer. Textos e contações
e prosopopéias. Ou o que ele quis dizer quando se calou. Esse é
o bolero-blues de Borges. De uma louca lucidez limpa, com uma literatura espetacular,
ele fazia a poesia desmiolada (cabide de pregos), o conto-ensaio (ficções),
a palavra ao pé da letra.
Já imaginou?
Jorge Luis Borges, britânico-latino, mito e satisfação de
lê-lo, sabê-lo, colhê-lo - alguém aí disse entender
no primeiro arrazoado? Nem pensar. Ele escrevia sobre o que o leitor tinha que
pintar a reflexão pro entendimento acima da lei. Ferino, lírico,
real-surreal, novidadeiro, cheio de panca - com elegância - e alto domínio
de línguas e letras e variações em torno do mesmo estilo
de lambanças e releituras: ele de si.
Borges, a excelência da escrita quase pintura, do deleite de saber reler,
oxigenando corações e mentes, pintando o sete, com aquela cara
de arlequim lambido e as pencas de prosas e criticas. Visionário, sem
dúvida. Inesgotável. E questionava a crítica que não
o sabia compreender inteiro e completo. Quem o traduziria para o entendimento
linear de seu tempo atribulado?
Quem foi o latino-europeu Borges? A estética perene da inteligência
sentenciada em seu fazer silos de palavras. Milongueiro no self de si. Sendero
(senda espinhosa) que foi personagem de si mesmo. Entrevistas, cartas, registros,
rascunhos. Pistas falsas, fabricadas (a propósito dele) ou jogo marcado,
jogo de cena?. Jogo de xadrez labiríntico pintou-se espelho. O inverossímil
enlivrado. A alucinação criativa como um redemoinho furta-cor
de tantas coisas que fez, que foi, que burilou, que até inventou de inventar,
multidimensional, polivalente, eclético como um desbunde.
Um dos maiores e melhores escritores da nossa paradoxal sulamérica de
ibéricas utópicas. O deleite de escrever-se - destilar-se - ver-ter-se;
meio quasímo-organdi a ver o invisível, narrar o indizível,
biblioteca sagracial na alma; um quase coiso muito além de humanus, num
circus de humanus. Ainda assim pleno e táctil.
Os livros dele. A alma-livro dele virou livro livre. Todas as páginas
são Borges. Celeumas, paradigmas, retratações, pós
e contras, e lá está Borges numa esquina de um café de
Buenos Aires, muito além de las locas de maio, sonhando a redenção
de si pela obra inquestionável, pelo que criou irreverente, nobre e assim
mesmo pegajoso, fora do comum, fora de série. Clássico latino.
Escrevia para ser entendido por quem era do ramo, do oficio, do baú das
letras. Polemizar era sua praia porque era sua cara-coragem como conseqüência
da bagagem atônita de si.
Temos que rever Borges, sonhar Borges - pesadelar Borges - ilhá-lo num
tempo de só relê-lo inteiro e completo (se isso for possível
numa só vida), revendo o tácito, o implícito, o desdizer,
as entrelinhas, misturando sua vida, seus miolos, e o macadame-obra-prima que
é todo ele pelo lastro que deixou, universalizando sua inenarrável
dor.
Dor de existir?. Dor de saber antes? De pensar o sem símbolo qualificável
como se dessa dimensão?
Saravá Garcia Marques.
Desculpe, cara pálida, Borges é para poucos. Borges não
é para qualquer um. Ele adora andar na contracorrente dos rios narrativos,
habitar os pântanos das margens plácidas de seus criames, tem que
ter, ponhamos, cabeça aberta, olhos vivíssimos, cultura vívida,
lastro largo, sensibilidade louca, sensorialidade hangar, pescar as pistas,
rever, reler, ir e voltar, anotar, registrar, pensar sobre o ver, pensar sobre
o ler, ir pensando-repensando em quanto o lê com um radar-asa-de-abutre
para sacá-lo inteiro e pleno e total. Mas não é fácil.
As vezes Jorge Luis Borges é isso mesmo, um pé no sacro. Cadê
você?
Jorge Luis Borges não veio para explicar-(se).
Veio para confundir ainda mais a babel literária, pondo fogo na canjica
dessa mixórdia que é pensar a escrita voraz, altaneira, dando
mais lodo à contradição humana por excelência, varando
modelos e etiquetas, às vezes se misturando aqui e ali, dando pano pra
manga, mas sempre ele mesmo no contraditório difícil jogo de sobreviver
enquanto lúcido e sofredor disso e por isso mesmo marcado pelos deuses,
como um estigma que comportou só na literatura, não na sua vida-livro.
Deus enlouquece seus escolhidos?
Ser escritor foi sua purgação, libertação ou condenação?
Talvez até anunciação. Periga ser.
Tudo a ler?
Borges vive!
Ai de ti Planeta Húmus!