O professor Pasquale ficou famoso por ensinar como falar e escrever corretamente. A fama do personagem Creysson veio por motivos opostos. Ambos têm como referência uma língua imposta por quem venceu a resistência popular. Condenam aqueles que falam as variedades não dominantes da língua à marginalidade.
Para os poucos que não sabem, seu Creysson é um personagem
do ator Cláudio Manoel que aparece no programa Casseta & Planeta
Urgente, da TV Globo. Barrigudo, mal-vestido, cabelos ralos, com poucos
dentes, Creysson anuncia produtos de qualidade pra lá de duvidosas. Mas
o fator de maior atração da personagem é sua pronúncia
em um português que fica muito distante do que é considerado correto.
Um exemplo desse modo de falar é a frase que sempre usa para assegurar
a confiabilidade dos produtos que vende: "esse eu agarântio!".
O quadro poderia ser apenas uma sátira à enxurrada de bugigangas
vendidas pela tevê. Mas, ganha cores preconceituosas, ao entregar sua
promoção a um tipo que lembra pessoas pobres das periferias urbanas,
mesmo considerando sua forma caricatural. Afinal, a impressão que o personagem
dá aos espectadores é a de que aqueles que não têm
educação formal e não sabem falar o português culto,
acabam apelando para expedientes, no mínimo, desonestos para ganhar a
vida.
Não digo que pessoas assim não sejam freqüentes entre a população
mais pobre. Mas, com certeza não são mais freqüentes do que
entre os melhor remunerados e com acesso à formação escolar.
As inúmeras Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs)
que vêm, vão e permanecem na vida política institucional
do País, não deixam dúvidas sobre isso.
O quadro pode até ser engraçado, mas não é o talento
humorístico dos "cassetas" que estou discutindo. Este é
inegável. Estou falando das opções feitas pelo grupo que
geram um programa especializado em abordagens preconceituosas, não apenas
sobre pobres sem educação formal, mas também quanto a homossexuais,
negros, mulheres etc.
No entanto, não devemos mirar apenas nos programas humorísticos
quando falamos em preconceito. Alguém que poderia ser visto como o oposto
de Seu Creysson, na verdade se revela apenas o outro lado da moeda do mesmo
preconceito. Estou falando do famoso professor de português, Pasquale
Cipro Neto.
Na edição da revista Veja de 11 de setembro de 2002, por
exemplo, o professor Pasquale fez a seguinte declaração sobre
o personagem do Casseta & Planeta: "Gosto do Seu Creysson e não
tenho medo dele. Afinal de contas, ninguém vai começar a falar
daquele jeito". Declaração interessante, pois também
não conheço ninguém que fale como Pasquale recomenda que
falemos. E por que não? Porque a língua que nos ensinam na escola
é uma imposição. Uma imposição secular. Produto
da dominação sobre outras formas de falar e escrever. Não
uma dominação simbólica apenas. Mas a mesma dominação
que acabou com os índios e fez dos negros escravos. Daí, a dificuldade
em aceitar, por exemplo, o projeto-de-lei do deputado federal Aldo Rebello (PCdoB-SP),
que pretende manter a integridade da língua portuguesa. Qual integridade,
cara pálida? Aquela que fez milhões de índios desaparecerem
dizimados por maus-tratos e doenças? Aquela que explorou dezenas de gerações
de africanos para, no final, expulsar os negros do sistema de produção
e condená-los à informalidade e à mendicância?
Não estou dizendo que devemos abandonar o ensino da língua portuguesa
tal como ele acabou se impondo. Mas, é preciso lembrar sempre que aquele
que fala um português que não foi adotado como padrão, não
está cometendo erros. Está exercendo seu direito de explorar a
riqueza de variedades que qualquer língua falada tem. Deve fazer parte
do processo de aprendizado do português oficial, a discussão com
os alunos da forma como as outras variedades foram reprimidas. Isso sim é
preservar a língua de um povo. Mostrando que ela não é
única porque não existe povo único, nem nação
única. A unificação sob a sociedade de classes somente
se dá com a conscientização pelos dominados do poder que
os oprime. A partir daí, é preciso acabar com a dominação
para que as verdadeiras variedades (de comportamento, língua, crenças,
costumes, etc) se instalem sem preconceitos e imposições.
Claro que isso nada está sendo discutido nas escolas, sejam públicas
ou não. É preciso lutar para que comece a acontecer. Mas o problema
é ainda mais grave quando falamos dos cursinhos pré-vestibular.
Foi deles que surgiu a figura do professor Pasquale.
Tive aulas com Pasquale no cursinho Etapa por alguns meses no início
dos anos 80. Aliás, Pasquale foi o único a me ensinar regras de
acentuação nos poucos meses em que agüentei o ritmo do cursinho.
Mas nem Pasquale foi meu professor, nem eu fui um aluno dele.
Não há como enxergar qualquer coisa de pedagógico em uma
sala de 130 ou 150 alunos, cuja tarefa é aprender em 10 meses o que deveriam
ter assimilado em pelo menos 3 anos de escola. Não há professores
de um lado e alunos de outro. Há animadores de auditório num palco
e espectadores tentando se concentrar num auditório. Entre estes últimos,
alguns vão ficar no meio do caminho por falta de dinheiro, de tempo ou
de ambos. Dentre os que resistirem, muitos serão barrados no vestibular.
Portanto, não se trata de educação. De formação
de pessoas com capacidade de pensar por si próprias, de fazer escolhas
com um mínimo de clareza sobre o que está em jogo na sociedade.
Trata-se de competidores, de finalistas chegando a todo momento perto da linha
mortal da desclassificação. Da eliminação por falta
de requisitos como uma formação prévia em escolas de bom
nível (públicas ou privadas). Condições de estudar
sem precisar trabalhar, condições de trabalhar sem precisar fazer
horas-extras que inviabilizam o estudo, de trabalhar com um salário suficiente
para pagar o curso etc.
Não quero transformar os professores de cursinhos em vilões. São
trabalhadores em busca do ganha-pão. Era de Pasquale Cipro. E este já
não é mais apenas outro animador de auditórios de cursinhos.
Ganhou espaço na mídia. Cobra para fazer palestras e anúncios
publicitários. Deu-se ao capricho de fazer comercial para o McDonalds.
Uma empresa que vende lixo gastronômico norte-americano para um público
que está muito próximo daquele que freqüenta os cursinhos.
Apesar de toda esta exposição, Pasquale nada faz para denunciar
o uso da língua culta como mais uma muralha contra o acesso dos mais
pobres a seus direitos. Não denuncia o fato de que a grande maioria da
população não tem a menor condição de entender
os textos da Constituição e das leis do país. Não
explica que a língua é muito mais dinâmica e rica do que
querem os manuais de redação. No máximo, ele diz que não
faz mal falar essa ou aquela palavra em situações informais. Mas
que para fazer um vestibular, preencher uma ficha de emprego, escrever uma carta
comercial, não há espaço para informalidades. E ele tem
razão se consideramos o público a que está se dirigindo.
Uma avaliação internacional da educação feita pela
Unesco em 2002 descobriu que metade dos brasileiros na escola está apenas
no nível 1 de alfabetização. Isto é, são
capazes de identificar palavras em anúncios e capas de revista. Sabem
assinar o próprio nome, mas não conseguem usar a leitura para
aumentar seus conhecimentos. Portanto, Pasquale está falando com apenas
metade da população. E essa metade espera encontrar em seus conselhos
armas para ficar mais competitiva na busca de pouquíssimas oportunidades
de emprego e vagas na universidade. A gramática como mais uma engrenagem
que mantém o sistema funcionando no sentido da concentração
de poder e riqueza. Essa tem sido a função de Pasquale com seus
livros, colunas e textos.
Muito mais poderia ser dito sobre essa dupla divulgadora de preconceitos. Mas,
minha competência é curta, assim como deve ser o tempo de quem
me lê. Quem quiser conhecer alguém que realmente sabe da matéria,
acesse a página do excelente lingüista Marcos Bagno: www.marcosbagno.com.br.