A Garganta da Serpente
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O senhor do outro mundo

(Renato Dutra Gomes)

Primeiro existe o nada, ou seja, apenas o papel em branco. Mas a partir desse ponto, o ficcionista observa a realidade que o cerca e por, meio de sua intuição, recria a realidade transformando-a em algo denominado "supra-realidade". Nesse mundo paralelo o ficcionista é um deus, ele cria todo o universo, literário, depois torna-o habitado e por fim concede as personagens o poder do livre arbítrio. Sim, as personagens de uma história, seja ela conto, romance ou poema, necessitam de livre arbítrio. O escritor apenas supervisiona o desenrolar do enredo para não deixar que o fio da meada se perca e que suas personagens fujam dos seus respectivos destinos. Muitas vezes o criador, literário, intercede por alguns de seus filhos (personagens), para ajudá-los em seus momentos de fraqueza, fato este que no "mundo real" seria atribuído a interseção divina.

Uma vez criado e habitado o mundo paralelo, supra-real, seus habitantes não serão simples turistas, nesse mágico mundo. Cada personagem exerce uma função pré estabelecida pelo criador, o que no mundo real costuma-se chamar "destino", de acordo com sua vontade e intenção. É importante salientar que não apenas o escritor faz uso dessas funções, existem ainda os leitores, estes sim verdadeiros turistas no mundo da literatura, de malas feitas, prontos para embarcar no mundo de fantasias criado pelo deus ficcionista.

Existe uma enorme variedade de funções que as personagens e seus mundos podem exercer. Eles, as vezes, servem para transportar seu criador, ou leitor, até um mundo utópico, na maioria das vezes, diferente daquele que serviu de base para a criação do mundo supra-real, porém, também podem transportá-los a um mundo distante, apenas no espaço, daquele em que estão.

O mundo ficcional e seus habitantes podem também servir para purgar, tanto leitor quanto escritor (criador), fazendo-os rir de defeitos ou atitudes muitas vezes deles próprios.

O criador também tem o poder de mobilizar os leitores, por meio da ficção, contra algo de errado no mundo real. Desta interação entre criador e leitor, passando pelas personagens, é possível se criar um mundo real, melhor para se viver, diminuindo, assim, as desigualdades entre os que habitam o mundo não ficcional.

As personagens do mundo ficcional podem transcender a seu tempo e espaço e ao tempo e espaço de seu criador, tornando-se desta forma sinfrônica, ou seja, compreensível a outras gerações e em outras regiões.

O criador pode tornar-se imortal, por meio de sua ficção. Camões por exemplo: eu (e a maioria das pessoas também) não sei se ele era alto ou baixo, gordo ou magro, cabeludo ou careca, enfim não sei como ele era, porém sei que ele existiu, graças ao mundo ficcional criado por ele. Esse mundo chama-se "Os Lusíadas".

A ficção também pode trazer consigo e transmitir aos leitores conhecimentos Históricos, científicos, geográficos, lingüísticos e muitos outros, de acordo com o interesse do seu criador.

No universo da ficção podem surgir rimas e brincadeiras que darão a ele e a seus habitantes um certo valor lúdico.

A criação do mundo ficcional pode independer de alguma função pré estabelecida. A esse fenômeno dá-se o nome de arte-pela-arte, o que já não deixa de ser uma função exercida pelo mundo supra-real e por seus habitantes.

As personagens (habitantes do mundo ficcional) tem todo o direito de expressar seus sentimentos de forma lírica. Este fato evidencia-se quando a voz, chamada "eu-lírico", que emana do mundo ficcional , como ecos do além, demonstra todo o sentimentalismo da personagem desse mundo.

O mais interessante é o fato de todas essas funções não serem excludentes, ou seja, elas podem coexistir dentro de um mesmo mundo supra-real, ajudando desta forma, tanto criador, quanto criaturas, neste mágico mundo da literatura.

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