A Garganta da Serpente
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Quão Importante É O Título?

(Raymundo Silveira)

Tenho uma grande amiga - ou pelo menos assim eu a considero - que é uma poeta de alto nível, artista plástica não menos inferior e uma das mulheres mais inteligentes que tive o prazer de conhecer. Concordo com ela em algumas coisas e discordo em muitas outras; talvez discordemos mais do que convirjamos, pois quase todos os dias travamos uma batalha virtual; quem sabe é este um dos motivos para haver durado até hoje a nossa amizade, pois não dizem que os pólos iguais se repelem? Não sei dizer exatamente o que mais me atrai nela; trata-se daquela velha história tão repetitiva com a qual tenho me saído bastante bem quando se trata de emitir a minha opinião sobre algo importante e sobre cujos detalhes técnicos não entendo muito, por isso saio pela tangente: "não sei por quê; simplesmente gosto, e pronto".

Um dos dogmas centrais da filosofia da minha amiga é quanto ao conteúdo de uma obra artística ou literária. Segundo ela, quanto menos informações contiver, por exemplo, um texto poético, melhor ele será. Até aí não questiono nada e, talvez até concorde inteiramente com ela quanto a este pormenor, pois são exatamente os seus poemas telegráficos os que mais admiro. Mas para tudo existe um limite; nem tanto sal no mar, nem tanta sílica na terra; ou, ainda, na virtude está o meio - ou seria o contrário? Sei não! Minha amiga é de um laconismo tão exagerado que nenhuma das suas obras, sejam literárias, sejam artes plásticas, possui sequer um título, e se quiserem vê-la puta da vida, que mandem algum editor ou repassador intitulá-las à sua revelia.

É precisamente neste aspecto, aparentemente tão trivial, onde mais discordamos. Ora, onde já se viu livro, poema, tela, estátua, conto, romance, canção, sonata, cantata, fuga, crônica, enfim qualquer forma de manifestação cultural ou artística sem nenhum título? Que se seja econômico, vá lá. Afinal, um dos melhores filmes de Costa-Gravas se chama "Z" e uma das mais famosas peças do Milôr, "É". Mas nadicas de nada? Sequer um ponto de interrogação ou de exclamação, ou mesmo um hieróglifo a fim de sugerir egiptologia no conteúdo de um conto sobre Ramsés II, me parece meio muito.

Neste ponto, sou radicalmente contra a minha amiga. Para mim, cerca de vinte por cento ou mais do sucesso de uma obra artística ou literária depende do título. Já imaginaram se o romance "Suave É A Noite" se chamasse, "Ciúme Na Riviera"; "Memórias Póstumas de Brás Cubas" se intitulasse apenas "Brás Cubas"; se Hitchcock tivesse tido a loucura de, em vez de "Psicose", ter denominado o seu filme "Assassinato No Motel"; se Rubem Braga no lugar de "Ai de Ti Copacabana", tivesse intitulado sua crônica, "Profecias À Beira-Mar; se W. Shakespeare não tivesse tido o bom senso de colocar na sua famosa peça o poético nome "A Midsummer Night's Dream" ("Sonho De Uma Noite De Verão)? Não diria que nenhuma das obras citadas não tivesse tido muito sucesso, pois isto seria uma insensatez, mas, certamente, este teria sido bem menor.

Por outro lado, existem também os entulhos cujos títulos pretensiosos em nada ajudaram, embora tivessem chamado atenção, pelo menos a princípio; e há também aqueles que, apesar de títulos relativamente estéreis teriam de se sobressair de um modo ou de outro por se tratar de obras primas, como é o caso, por exemplo, de "Os Sertões". Afinal, aquilo que tem qualidade sempre acaba se impondo. De qualquer modo, me parece uma afirmativa, no mínimo, leviana pretender que o título não influa no êxito de uma obra de arte, e esta leviandade poderia beirar a alienação mental quando o seu autor pretende que, mesmo não havendo título algum, ela obtenha alguma repercussão. Se, por exemplo, eu tivesse intitulado esta escrevinhação de Um dos fatores determinantes do valor intrínseco de uma obra literária e artística, você a teria lido, amigo (a) leitor (a)? E se não contivesse nenhum título, teria sequer lançado uma vista d'olhos sobre o meu texto? A gente vê cada uma...

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