A Garganta da Serpente
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A Síndrome Celulósica

(Raymundo Silveira)

A maioria das pessoas medianamente inteligentes, com um mínimo de visão do futuro e que têm acompanhado a evolução da informática, reconhece que os anos dos livros de papel estão pesados, medidos e contados. Uma minoria, contudo, ainda continua tão apegada a eles que não admite sequer usar a razão para pelo menos abrir as suas mentes. É como a história de um casal que se ama demais, um deles se encontra na fase terminal de uma doença incurável e o outro se recusa a aceitar a realidade. Dezenas de mecanismos psicológicos de defesa são utilizados inconscientemente com este intuito porque os indivíduos propendem a se aferrar aos seus hábitos, às suas comodidades, às suas conveniências e até às suas paixões com o propósito de não admitir mudanças, como se o progresso estivesse se importando com as suas ilusões. Portanto, escritores que sofrem da Síndrome Celulósica, corram logo para publicarem os seus tratados enquanto eles ainda não correm o risco de irem parar num museu mal acabem de sair do prelo!

Com efeito, quem não adora um livro de papel? Um dos meus hábitos mais renitentes é fazer minhas vias-sacras pelas livrarias da cidade e este costume não é de agora. Comecei a idolatrar livros desde os meus dez ou doze anos de idade. Poucos prazeres se comparam a passar horas percorrendo as prateleiras, tirando, alisando, lendo e até cheirando livros novos. Mesmo os sebos nunca deixei de freqüentar. Quando viajo, uma das minhas raras intolerâncias é quando minha companheira se mete a exercitar o esporte predileto dos turistas brasileiros - fazer compras. O único atenuante que me faz suportar a espera é ficar numa livraria enquanto ela desce e sobe ruas, avenidas, elevadores, escadas rolantes, escadas de pedra, de madeira, de ferro, o diabo, à procura dos objetos dos seus desejos, enquanto permaneço dentro da bookstore ou - se estiver em Paris - caminhando demoradamente pelas margens do Rio Sena a buquinar sebos à cata de alfarrábios.

Minha biblioteca não é gigantesca; nem sei, ao certo, quantos títulos ou volumes possuo, mas nas casas dos amigos que costumo freqüentar ainda estou por ver alguma cujo acervo sequer se aproxime do dela. Aliás, a maioria nem biblioteca possui. Sou, portanto, muito mais do um simples bibliófilo: sou um adorador de livros. Todavia, sou também uma pessoa que não guarda ilusões. Há menos de dez anos, não conseguia permanecer mais do que dez minutos sem ler, sem estar a folhear um livro novo, sem consultar uma das muitas enciclopédias que possuo: A Britânica, em inglês, a Delta Larousse, em português e várias de medicina. À menor dúvida acerca de um fato histórico, do nome de um escritor, de um termo estranho, de uma pergunta banal que uma das minhas filhas me fazia, corria para os meus livros de consulta. Ainda hoje é muito difícil sair de casa sem um livro. É a única maneira que me leva a conjugar o verbo esperar sem desesperar. Porém, as enciclopédias, coitadas, ficaram a ver navios, digo melhor, poeira, porque tenho tudo o que quero a duas tecladas do computador.

Por outro lado, sempre fui uma pessoa pragmática. Quando ouço alguém discutir acaloradamente contra ou favor de inseminações artificiais, clonagens, fertilizações in vitro com sêmen e óvulos de gente que já morreu, minha vontade é de rir e é o que costumo mesmo fazer. Ninguém poderá deter o avanço da ciência nem a ferro, fogo, pau, ou chibata. Durante a Idade Média e o Renascimento cabeças rolaram, pessoas foram compelidas a abjurar as suas convicções, muita gente foi queimada em fogueiras para se tentar impedir o progresso do conhecimento humano, mas nunca existiu um único caso em que isto tenha sido possível.

Há pouco mais de dez anos, assistindo ao Programa do Jô Soares (quando ainda prestava, porque sua pauta não era imposta pela "filosofia" global) vi uma entrevista com o cientista de computação Jean Paul Jacob - funcionário da IBM - onde ele comentou fatos e fez demonstrações "estarrecedoras" acerca de como seria a informática do futuro. Naquela época, isto é, há pouco mais de dez anos, o melhor computador que existia para vender era o 386. Não havia Internet (pelo menos banalizada com está hoje), multimídias, ICQs, MSNs, laptops, palmtops, Pentiuns mil, videocams, códigos de barras e tantas outras engenhocas que hoje não conseguimos entender como vivíamos sem elas. Quando terminou a entrevista eu me virei para a minha mulher e disse "esse cara está sendo pago para mentir". Quase tudo o que ele falou se materializou pouco mais de cinco anos depois.

Por isso quando ouço falarem que os livros de papel nunca vão se acabar, também costumo rir muito; rir demais, até. Quando vejo alguém dizer que um romance como "Guerra e Paz" jamais será possível ser lido no computador, me lembro de uma noite de luar na minha aldeia, em 1958, quando o assunto era a ida do homem à Lua. Éramos todos seminaristas e ouvíamos, sem duvidar de uma vírgula, do que dizia o nosso vigário: "Ir à lua? O homem fará tudo o que quiser, menos deixar este planeta". Infelizmente ele não viveu até o dia 20 de Julho de 1969. Nós sim. E foi somente dele que eu me lembrei no exato momento em que ouvi aquelas palavras hoje já tão banais: "um pequeno passo e um grande salto". Gostaria tanto de estar vivo daqui a uns dez ou vinte anos somente para reler este texto que acabo de escrevinhar...

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