A Garganta da Serpente
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Sobre Literaturas & Literatices

(Raymundo Silveira)

Um dos maiores clássicos do romance brasileiro, escrito em 1857, “O Guarani”, termina assim: “O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo. A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte.” Como vêem, não há aquele “final feliz” (e nem infeliz) que todo mundo esperava. Que rumo teriam tomado Peri e Ceci? Ninguém sabe; foi sepultado juntamente com Alencar.

O não menos famoso “Dom Casmurro” deixou um eterno legado - uma dúvida atroz – para atormentar a todos os seus leitores. Afinal, Capitu traiu ou não traiu o seu marido Bentinho?

Um crítico literário famoso – Joaquim Matos – assim se expressa sobre o escritor português José Saramago: "(...) Um conto (ou um romance) nunca é uma estória para Saramago. Será, quando muito, uma história de estórias”. Em outras palavras, a obra de Saramago é quase toda metafórica.

Obviamente, o escrevinhador deste texto jamais ousaria se comparar, nem de longe, com qualquer um dos três monstros sagrados acima citados. Gostaria, porém de fazer uma única indagação: por que somente os escritores famosos deteriam o privilégio de não terminar uma história ao gosto do leitor, não infundir dúvidas em sua mente, deixar de convidá-lo a pensar – coisa que muita gente neste país detesta fazer, diga-se -, ou não escrever através de metáforas? Essa questão tem a sua razão de existir, pois alguns leitores deste escrevinhador têm-lhe cobrado clareza absoluta, além de começo meio e fim (de preferência feliz) nas historietas que ousa escrevinhar.

Aconteceu assim com os contos “Os Livros Novos do Imperador”, “A Coceira”, “O Meu Rio Não É De Janeiro”, entre vários outros. Contudo, fiquemos apenas com estes três, pois serão suficientes para demonstrar o propósito deste artigo.

Se estivesse escrevendo roteiros de novelas, tudo bem. Teria que deixar tudo muito bem explicadinho, claro, cristalino. Tão óbvio quanto a adição 2 + 2 = 4. Deveria evitar qualquer tipo de metáforas, teria de encompridar ou abreviar o texto de acordo como o gosto do leitor, digo melhor, espectador e preparar um final apoteótico, com casamento, marcha nupcial, chuva de arroz e até contar os detalhes da lua de mel e dizer que os noivos foram eternamente felizes.

Sucede que este escrevinhador não tem a menor vocação, experiência, competência, tempo, saco para escrever roteiros de novelas. Se não se pode chamar aos seus textos de literatura, que o chamem pelo menos de literatice, porém nunca de roteiros de novelas.

O que é literatura? Sempre de acordo com o caçador de borboletas, Aurélio Buarque de Holanda, é a “Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso”. Já literatice significa: 1. Literatura ruim ou ridícula. 2. Mania ridícula da literatura; literatismo. Nesta mesopotâmia é que deve ser procurado o que escrevinho. Nunca noutro lugar. Serei um praticante da literatura ou da literatice? Pouco importa, mesmo porque esta idéia é mais do que subjetiva. Mas a fronteira entre estes dois conceitos e os roteiros de novelas, a meu ver, está muito bem definida.

Em síntese, se a literatura é a arte de compor trabalhos artísticos e a literatice é uma literatura ruim, não compete a quem exerce esta ou aquela, escrever aquilo que o leitor prefere ler, mas tão somente compor as idéias que se propõe a escrever. O contrário disto pode ser tudo: comércio, má fé, incitação ao crime, alienação, fomento de consumo; exceto, obviamente, literatura. Ou literatice.

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