Recebi a três semanas um e-mail a indagar-me o que seja 'escrever
bem'. Confesso que fiquei a meditar uns bons cinco minutos antes de encontrar
uma linha de argumentação suficiente o bastante para responder
tal questão.
Também fui reler O QUE É LITERATURA? Do filósofo francês
Jean-Paul Sartre, além de trechos de Bachelard, a procura
de uma iluminação súbita, um insight providencial,
que me orientasse no momento de abordar a minha própria atividade.
Por que este receio? Por que este temor de tentar desmistificar a escrita? Lembro
de uma parábola húngara que, de inusitada, retrata bem o problema.
Dizem que numa aldeia, ao sul de Budapeste, havia um homem que era um excelente
operador, com cortes rápidos e certeiros, não com um bisturi,
mas com uma navalha! Que era muito mais habilidoso que muito cirurgião
da capital. Até catarata o homem operava. Fazia o paciente sentar-se
na cadeira, em sua oficina (pois o homem era artesão) e abrindo as pálpebras
lacrimejantes, passava a navalha nos olhos, deixando as vistas limpas! Isso
antes ninguém vira! E a notícia correu mundo, até chegar
à capital. Um doutor de Budapeste desceu até a aldeia, para conhecer
o tal 'mão de ouro' e encontrou mesmo.O homem diante de uma matrona,
acompanhada pelos filhos, e por catarata nos dois olhos. Ela dizia apenas enxergar
os vultos mais próximos. Pois é, o homem, num gesto preciso, correu
a lâmina sobre o olho direito e - pronto! - o manto nebuloso sumiu! Aí
o médico quase perdeu o fôlego, abordou o artesão com um
palavreado hermético e gestos enfáticos: "mas o senhor não
sabe que é um olho! Não pode entender fragilidade da íris,
a delicadeza da esclerótica, e o cristalino, então! E não
puxe a pálpebra tanto assim pode provocar um desligamento!"
O Artesão ficou ali, de boca aberta, a tentar entender aquele mistério
todo - e sua mão começou a tremer! Sim, diante do olho esquerdo
- e sua mão tremia! "Não, não posso operar! Não
posso tocar em algo tão frágil!" E a mulher ficou com o outro
olho nublado.
Moral: quando se pensa muito, não se anima a agir - ou - não só
de conhecimento se faz a ação. Ou qualquer outra moral.
Mas eu vejo assim: enquanto o artesão não conhecia a complexidade
de um olho, ele agia por instinto, por prática, como muitas parteiras
do interior, que desconhecem obstetrícia. E quanto tomou conhecimento,
perdeu a sua coragem em si mesmo. Assim como muitas parteiras ficariam perplexas
se encontrassem uma obstetra.
Assim é com muitos profissionais (e amadores) da escrita - uns possuem
o instinto, o feeling, a audácia, o enredo, mas desconhecem a
técnica, a gramática, o dicionário, ou seja, o manual de
redação; enquanto outros são professores, mestres em literatura,
vivem meio às apostilas e manuais, mas, no entanto, não escrevem
nem um poeminha que convença.
Sim, enquanto alguns têm a técnica, e são estéreis,
outros têm o talento, e são ineficientes. Estes não conseguem
se aprimorar, devido ao pouco embasamento lingüístico, aqueles não
produzem por faltar o dom da observação e da imaginação.
Posso enumerar vários exemplos dos dois casos, lembrando aqui autores
de BH, Betim e Contagem, que conheço e acompanho a obra, mas seria excessivo.
Até porque o padrão tem sido esse mesmo, e o bom escritor é
aquele que consegue unir talento + técnica. E eis o segredo
para o sucesso (que ainda necessitará de um terceiro ingrediente: a mídia).
Escrever bem é dominar uma técnica para expressar construtos da
imaginação. É saber comunicar incomunicável, e com
clareza temática e correção gramatical. É construir
uma ponte até o outro - feita de concreto e diamante. É dizer
algo novo e com formato novo. É transtornar a linguagem após tê-la
ultrapassado (e não como muitos fazem., ao justificarem erros idiomáticos,
alegando novidade artística!)
Escrever bem é apropriar-se do mundo observado numa perspectiva totalmente
pessoal e tornar tal observação numa descrição capaz
de alcançar e seduzir o outro. Até porque 'alcançar' já
é um desafio, pois é um encontro de transcendências, uma
capacidade de transpor os abismos entre as consciências - o objetivo confesso
da comunicação.
Escrever bem é saber O QUE direi e o COMO direi - é aliar a mensagem
e a estética - é anunciar as núpcias químicas entre
uma boa história e as exigências da gramática - é
além de tudo apresentar a obra como natural, espontânea, sem transparecer
os esforços e o sofrimento.
E, claro, ser original - pois senão serás apenas autor (a) de
mais um livro nas abarrotadas estantes.
É isso. Espero ter respondido a pergunta.