A Literatura enquanto construção de signos e arquétipos,
que alcançou, no Brasil, a maturidade com obras referenciais, tais "Macunaíma",
de Mário de Andrade, e "Grande Sertão:Veredas",
de Guimarães Rosa, cedeu espaço, na geração
50/60, a uma literatura de introspecção e depoimento, onde a voz
narrativa pode até tecer enunciados sobre o transcendente, mas sempre
a partir de si mesma. Isto é, falando do universal ao discursar sobre
o individual.
Assim é Clarice Lispector, mergulhada em suas dúvidas,
sempre tentando testemunhar o "caos interior" que dá luz a
uma "estrela dançarina", nas palavras do profeta alemão
Friedrich Nietzsche. Diante de sua máquina datilográfica,
desabafando seus temores e ansiedades existenciais, sem retocar ou revisar os
textos, Clarice Lispector procura registrar suas 'epifanias', ou seja,
encontros imediatos com a percepção de ser-existente, um-com-todas-as-coisas
e separado-pela-Consciência.
Sua escrita, sem paralelo (exceto por perspectivas de Poe, Dostoievski
e Virginia Woolf) traz o desconforto diante dos fatos que outros julgam
cotidianos e normais. A percepção que remove os véus do
padronizado é o instrumento que Clarice Lispector manuseia ao
relatar suas experiências com o que passa despercebido aos demais.
Ao evitar retocar ou revisar seus textos, Clarice Lispector procura manter
a integridade (e instantaneidade) de seus relatos que pretendem 'fotografar'
um momento e a emoção que este produz na mente desperta e sempre
alerta.
Partindo de situações-limite (um homem em fuga, em "Maçã
no Escuro", ou uma mulher diante de uma barata, em "A vida segundo
G.H.", etc), Clarice Lispector mostra as reações de
uma personagem que perde as referências e precisa criar novas. Quando
todo o castelo de cartas da realidade desaba, sobram apenas uns fragmentos de
identidades e lembranças de uma de segurança volátil. O
ser começa a duvidar até da própria existência.
Se todas as referências volatizam e a construção de novas
custa um dispêndio colossal de energia e dedicação íntima,
as personagens se encontram, momentaneamente, num vácuo de perspectivas,
sem compromisso, ainda que existindo. Nem todas conseguem sair desde vácuo,
muitos desesperam, tal a personagem-narradora no conto "Perdoando Deus",
onde um simples rato basta para destruir toda a sua boa-vontade.
Notando o desconforto existencial das personagens, muitas imersas na solidão,
ainda que altruístas e criativas, pode-se constatar que o "abismo
entre as almas é jamais transposto" (como escreveu Fernando Pessoa),
o que causa o mal-estarmaior de não poderem confiar em outros e relatarem
assim suas dúvidas e conflitos. As personagens estão abandonadas
a si mesmas. E à procura de si mesmas. Onde encontrarão um guia?
A necessidade de exteriorizar apreensões e anseios é outra marca
das tantas personagens de Clarice Lispector, que vivem à espera
de alguém que ouça tais pensamentos e compartilhe tais sentimentos,
sempre sofrendo pela falta de confiança, sendo jogadas de situação
em situação, como cobaias de uma experiência bizarra - a
experiência do existir.
Assim, Clarice Lispector deixa seu testemunho, de uma escrita tortuosa,
plena de ânsias, mas destinada a deixar uma mensagem - a vida dói,
mas a escrita alivia.
(fev2006)