A Garganta da Serpente
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A contra-maré da literatura

(Leonardo Teixeira)

Desligue a TV, cale os sons do rádio que gritam a rapariga, a patricinha, a eguinha pocotó, o samba-pagode-axé-brega-requebra-chuchu. O momento agora é leitura.

Quando se alimenta a crença na educação pela arte, corre-se o risco de enveredar pelos caminhos absurdos de uma quase solidão rumo à contra-maré. Porque na literatura há uma certa tendência ao ostracismo intelectual que é bastante empregado nas livrarias e nos meandros do mercado editorial. Explico: a maré conduz o fluxo dos leitores para uma cachoeira denominada "letras de auto-ajuda para massagear o ego vazio". O mercado distribuidor e editorial costuma bancar o financiamento das listas dos mais vendidos, expostos na vitrine, que são geralmente manipuladas.

Início de século traz a moda das coletâneas dos mais vendidos, dos mais influentes, dos clássicos, dos cem melhores. E um processo de mitificação transforma escritores, gente comum que paga impostos, em semideuses. Ler Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Bernardo Élis, Hugo de Carvalho Ramos, Borges, Joyce, Kafka e Proust é muito bom e importante. Mas, como já disse Nelson de Oliveria, "a leitura tem que ser triocular: um olho no passado canonizado, o segundo no passado quase esquecido e o terceiro no presente. Esse é o tripé do equilíbrio literário. Por isso é que boa parte da crítica vive levando tombos, pelo olhar caolho no lado 'canônico', dando as costas aos autores relegados ao limbo dos injustamente amaldiçoados pelo esquecimento, não por falta de talento, mas por falta de interesse dos olhares de antolhos", que seguem aquela maré.

Viver numa terra precária foi o que deixou o grande romancista pantaneiro Ricardo Guilherme Dicke muito tempo sem publicar. Dessa mesma terra saem as poesias de Manoel de Barros. Os melindres e contradições deixam a cultura brasileira sofrer de uma injustiça crônica do tipo amnésia caolha. Isso foi um dos motivos que fez o brilhante escritor Raduan Nassar abandonar a literatura para criar galinhas. Brasigóis Felício já disse que nós outros, "na província de Bóias", também sofremos com a fartura: aqui farta quase tudo nessa precariedade!

Não vamos esquecer de José Agrippino de Paula, Campos de Carvalho, Uilcon Pereira, Maura Lopes Cançado, Rosário Fusco e tantos outros que ficaram parcialmente ocultos. Vamos ver o presente em Francisco Perna Filho, Valdivino Brás, Delermando Vieira, Fausto Valle, Dionísio Machado, Celso Cláudio, José Maria, Ronaldo Cagiano, José Augusto de Carvalho, José Humberto Henriques, Edival Lourenço, Marçal Aquino, Luiz Ruffato, Luiz de Aquino, além de uma série de nomes que não caberiam neste espaço.

Se não houver um resgate literário, sofreremos do injusto processo de sucateamento, relegando a memória cultural ao final da maré: a cachoeira em queda livre sem direito à rapel. Quando os livros não são encontrados nem nos sebos, ou, numa hipótese desconcertante, vemos os bons livros escondidos, nas sombras ocultas das prateleiras de baixo, no fundo da livraria, longe dos holofotes e das vitrines, há uma resposta: a maré segue o fluxo negligente da ignorância, rumo ao esquecimento da cachoeira supérflua. Ligue a TV para acompanhar as cenas de traição, vadiagem & Cia das novelas. Escute os sucessos do rádio, ligue toda a eletricidade da casa até tomar um choque pelos botões do controle remoto. PLIP, PLIP, PLIM PLIM, TZZZ.

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