Sobre usos e abusos da teoria benjaminiana na cultura contemporânea.
Falo também particularmente aos jovens benjaminianos no plenário que se encontram em contínuo desconforto atraídos (esperemos) pelos escritos de Walter Benjamin devido à sua radicalidade intelectual e integridade político-existencial, ao mesmo tempo em que lutam freneticamente pelos poucos postos na academia que parecem estar reservados para os candidatos intelectualmente mais oportunistas e cautelosos.Susan Buck-Morss
Desde que os trabalhos do pensador judaico-alemão Walter Benjamin a
respeito da teoria estética e da história ganharam tradução
para o português (isso no final da década de 60 - como de praxe,
muito tardiamente, uma vez que o texto original data de 1936, num intervalo,
portanto, de mais de trinta anos), sua popularidade nos meios acadêmicos
brasileiros apresentou uma ascensão instantânea e ininterrupta
que perdura até hoje.
Todos os alunos, professores e pesquisadores que, assim como eu, não
escaparam dos laços teóricos benjaminianos que nos alcançaram
em alguma esquina de nossas peregrinações intelectuais sabem que
um dos capítulos mais fotocopiados, mais lidos, mais citados, mais gastos
dos livros desse autor é aquele de título pouco econômico
e que, compreensivelmente, já mereceu inclusive sigla em muitas teses
e dissertações, o famoso "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica", o qual trata, entre outras, da questão da "desauratização"
das obras de arte em geral e, por osmose, por assim dizer (pois se sabe: muito
do criador fica na criatura), também de seus autores. Trata-se do mesmo
ensaio da primeira edição francesa de 1936, republicado em segunda
versão em 1955, em que, numa perigosa redução de pressupostos,
Benjamin aborda a necessidade de se combater a estetização da
vida política e promover a politização da arte.
Parece-me que o dito "o tiro saiu pela culatra" nunca soou tão
fatídico e verdadeiro. Isso porque a tal popularidade referida acima
se materializou numa proliferação de citações numerosas
e obrigatórias aos livros de Walter Benjamin nos corpus das pesquisas
acadêmicas desde então produzidas. E aqui não estou me circunscrevendo
ao campo da crítica e estudos literários, o que poderia ocorrer
já que a ele também pertenço, mas às mais diversas
áreas das ditas ciências humanas e sociais, uma vez que as reflexões
daquele autor serviram e tem servido de suporte teórico a investigações
sobre os mais variados temas, embora, é verdade, a erudição
dos escritos de Benjamin aponte para tal abertura.
Mas, como esse exercício se quer simples provocação antes
de mais nada, parece-nos que o nome de Walter Benjamin veio se colando aos títulos
das produções escritas como espécie de etiqueta que autenticaria
a "marca de qualidade" do produto intelectual, não importando
se o resultado final daquele exercício crítico realmente apresentasse
ou não um "valor de uso" no restrito mercado da atividade pensante
brasileira. Caso semelhante ocorreu com Roland Barthes, Michel Foucault, Deleuze,
Derrida e Mikhail Bakhtin, cujas peculiaridades de grafia e pronúncia
do nome deste último, não impediram que, conforme notou o lagecuritibano
Cristovão Tezza - além de conhecido escritor, um estudioso da
obra do teórico russo -, seus conceitos mais caros fossem indistintamente
aplicados como categorias fixas em inúmeros ensaios e teses. É
nesse sentido que a carnavalização e o dialogismo já serviram
para explicar desde os Sermões do Padre António Vieira
até as pornochanchadas, possivelmente passando pelo funk pancadão
carioca.
Uma situação: mesmo que o objeto de estudo de determinado sujeito
não o force, num primeiro momento, a criar pontes teóricas entre
seus comentários críticos e os textos de Walter Benjamin, ele
acaba sentindo, mais cedo ou mais tarde, a necessidade irredutível de
fazê-lo por uma espécie de compromisso moral com a academia e sob
o risco de seu trabalho aparentar carecer de atualidade e relevância crítica.
Se ele já escreveu um capítulo inteiro do trabalho e ainda não
fez menção nenhuma a Benjamim, começa a ser tomado de angústia
e preocupa-se em encontrar, o mais breve possível, uma oportunidade de
citação. Muitas, de preferência.
Para ampliarmos um pouco mais o campo de reflexões benjaminianas, podemos
pensar sobre o que aconteceu com a noção de flâneur
(em linhas gerais, o herói moderno que transita pelos espaços
urbanos observando-os e refletindo-os). Como apontou o professor André
Bueno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em capítulo intitulado
"Sinais da cidade: forma literária e vida cotidiana", o conceito
de flâneur virou uma espécie de "pau-para-toda-obra da crítica
recente, que reduz Walter Benjamin a um clichê", nas palavras do
autor. Se me proponho a discorrer sobre o rap, por exemplo, e, inicialmente,
não considere importante trazer para a análise nenhum ponto dos
escritos de Benjamin, acabo por forçar uma aproximação,
mesmo pagando o preço de ela parecer absurda. Nesse caso, poderia ver
o rapper como uma espécie de flâneur da periferia das grandes cidades,
que passeia pelas vielas do morro colhendo matéria para a sua arte. Ou
podemos imaginar, ainda, a leitura do diário de um travesti intelectualizado
que se descreve como um flâneur dos becos e inferninhos da urbe. E, aqui,
alguém pode estar pensando: não é que o conceito benjaminiano
parece ser multiuso mesmo.
É bem verdade que a maioria das interpretações filosóficas,
estéticas, políticas e históricas produzidas com base nos
escritos de Walter Benjamin não chegam a ser catastróficas, em
sua maioria. Pois, regra geral, quem chega a Benjamin já deve ter acumulado
um repertório mínimo de leitura suficiente para evitar maiores
desastres e equívocos conceituais. O que se quer chamar atenção
aqui é para questão parecida com aquilo que a professora e escritora
norte-americana Susan Buck-Morss já ponderava numa palestra proferida
na USP, lá nos idos de 1998, e de cujo texto transcrevemos as linhas
que servem de epígrafe para este escrito. Sobre Benjamin, perguntou ela
à platéia: "Devíamos celebrá-lo como Grande
Pensador, quando ele mesmo depreciou incansavelmente a própria idéia
do culto ao gênio?".
No presente momento, não sei quais são os indicadores do ibope
acadêmico em relação à posição de Walter
Benjamin no ranking de citações. Quem quiser conferir a popularidade
do autor pode digitar o nome dele no Google e verificar quantos resultados aparecem.
Se Benjamin tiver caído posições não é o
caso de se alarmar. Outros autores, outros nomes, outros rótulos já
devem estar na fila para substituí-lo e também se transformarem
em referência obrigatória. A reserva técnica da crítica
é enorme.