A Garganta da Serpente
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Cronista bom não é demagogo radical

(Jorge Gomes da Silva)

Dominar a versátil forma de expressão que é a escrita constitui uma benesse ao alcance de apenas alguns. Ao contrário de outras artes, a escrita pode exprimir de forma inequívoca as ideias e as opiniões de cada um, sem necessitar de retoques ou de simbolismos. Sem obrigar o leitor a um esforço de interpretação. Pão, pão, queijo, queijo, como dizemos em Portugal.

Como as outras artes, a escrita pode buscar a beleza, a simbologia, a imagem distorcida e outros floreados para se justificar enquanto expressão artística. Porém, existem enquadramentos próprios para esses devaneios. Como a poesia, o romance ou a ficção.

A crónica, pelo contrário, como o artigo, a notícia ou outra prosa de pendor mais jornalístico, presume uma abordagem directa e frontal ao tema, ainda que deixe maior margem de manobra para retoques de estilo individual. Isso, todavia, não lhe subtrai um cariz mais informativo e alguma exigência de rigor.

Sempre que um cronista escreve deve levar em conta o objectivo final da sua prosa, considerando a legítima expectativa dos potenciais leitores, e apelar à sensatez para não transformar uma crónica num arremedo panfletário e irresponsável. Ignorar o possível impacto do que se diz nas consciências dos destinatários finais, cuja permeabilidade se desconhece à priori, é como permitir a uma criança que brinque com fósforos: ninguém controla a dimensão do fogo que pode atear-se dessa maneira.

A sensatez assume-se por inerência como um critério fundamental para o cronista que publica as suas matérias. Uma crónica não equivale a um desabafo que se tem à mesa do café, é um instrumento de formação de mentalidades que requer um mínimo de ponderação.

O recurso a um tom extremado, a despropósito, ainda que reflita a opinião genuína do respectivo autor, é uma leviandade sem perdão. No pior dos casos, pode conduzir a excessos por parte de pessoas mais influenciáveis e constituir assim a acha para uma fogueira que a infantilidade de quem escreve não consegue justificar. E não se compadece de boas intenções. É coisa séria e deve ser respeitada nessa condição.

Saber escrever, ao contrário do que creêm alguns "arrumadores de palavras", engloba o respeito pela forma, pelo conteúdo e acima de tudo pelos receptores anónimos e indistintos do que se diz. Liberdade de expressão das ideias não significa libertinagem de propagação das asneiras.

Assuntos melindrosos requerem subtileza e contenção, no contexto de uma crónica criada sob esse estatuto e publicada nessa condição. Para os berros pseudo-doutrinários existem enquadramentos e meios de divulgação específicos e a anarquia não tem lugar nestes moldes da escrita para o leitor comum.

Esquecer estes pressupostos é fazer tábua rasa das regras mais elementares a que se deve subordinar um cronista. É abusar de um instrumento que não se destina, por princípio, ao livre arbítrio de quem se arvora de pedagogo e se fantasia de escritor.

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