Rubem Fonseca figura entre os grandes nomes da literatura brasileira contemporânea
com destaque. Sua produção literária é bastante
premiada e teve várias adaptações para o cinema, dentre
elas a obra selecionada, Bufo & Spallanzani. O filme foi dirigido
por Flávio R. Tambellini, teve entre seus produtores Andrucha Waddington
e foi apreciado pela crítica, somando à sua lista de prêmios
quatro Kikitos de Ouro no Festival de Gramado, além de sete indicações
ao Grande Prêmio BR do Cinema.
A teoria crítica denominada Literatura e Sociedade embasará as
afirmações feitas neste artigo. Tal linha crítica é
abordada por diversos críticos, dentre os quais se destaca Antonio Candido,
com vários trabalhos publicados na área. Estudos com abordagem
sociológica sobre a literatura - e outras artes em geral - exigem atenção
e cuidado para que não atribuam à obra literária a mera
função de descrever a realidade com fidelidade e precisão.
Há ainda um outro extremo: atribuir à obra uma independência
total diante da realidade.
Sabe-se que textos literários são criações, portanto,
não devem ser entendidos como "escravos" do real, entretanto,
é evidente que os assuntos abordados em qualquer produção
humana são referentes a pessoas, impressões, sentimentos e afins,
logo, partem de algo preexistente. Todavia, independente de ser baseado explícita
ou implicitamente no real, cria-se, a partir do observado, uma realidade ficcional,
que tem um funcionamento próprio e da qual não se deve esperar
fidelidade ao que a baseou.
Antonio Candido ao versar acerca das formas possíveis de analisar uma
obra literária sob o prisma sociológico, afirma que é preciso
considerar que
só a [a obra literária] podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.
É, portanto, fundamental que se entenda o aspecto sociológico
como integrante de um texto literário, mas não como determinante
de sua qualidade, significado e, ainda, que não são mutuamente
excludentes a relação de uma obra literária com a realidade
e sua independência artística.
Sobre isso, Octávio Ianni afirma que
Em razão da relação evidente ou implícita, real ou imaginária, transparente ou esquizofrênica, com a "realidade", a sociologia e a literatura revelam-se formas de autoconsciência. Não se trata de aceitar tranqüilamente que existe uma dada "realidade", a qual poderia ser descrita, compreendida, explicada ou imaginada. A despeito das dúvidas, é inegável que essas formas narrativas conferem ao leitor a convicção ou a ilusão do que pode ser ou teria sido o dilema, a situação ou o incidente.
As observações de Ianni reiteram o que foi dito por Antonio Candido,
corroborando que a relação entre sociedade e literatura não
diminui o valor estético-artístico da obra e menos ainda a transformará
em um texto de valor histórico-documental.
Outro crítico que reitera veementemente o que foi dito pelos dois anteriores,
é Franklin de Oliveira, especialmente ao afirmar que
Arte e Literatura são instrumentos de Conhecimento - de conhecimento operativo. Desnudam, desvelam, revelam a vida como ela é, indicando a vida que deve ser: a presuntiva beleza injetável no existir humano. A arte - a da palavra e as não verbais - é um poder. (...)
A arte é impensável sem o seu fundamento social, mas esse fundamento não é a causa da qualidade da obra de arte, como também não é o limite de sua significação humana. As estruturas sociais e as estruturas artísticas são paralelas, e é este fato que permite à Arte ser a crítica da vida: a autoconsciência da humanidade.
Fica notório, com os excertos expostos, que os críticos citados convergem em suas opiniões e observações, fazendo com que, desse modo, a crítica sociológica tome forma e não se confunda com a teoria marxista, criticada ferozmente por diversos críticos, dentre os quais Hans Robert Jauss, que, ao falar sobre tal corrente, afirma:
A teoria marxista entendeu ser sua tarefa demonstrar o nexo da literatura em seu espelhamento da realidade social. Desnecessário seria determo-nos aqui nos resultados ingênuos obtidos pela historiografia literária praticada pelo marxismo vulgar, que jamais cansou de fazer derivar diretamente de alguns fatores econômicos e constelações de classes de "infra-estrutura" a multiplicidade dos fenômenos literários.
Observa-se a partir desse excerto, as falhas apontadas na teoria crítica
marxista pelo teórico em questão. A linha teórica Literatura
e Sociedade busca superar os radicalismos críticos da corrente marxista
e objetiva, como foi dito antes, considerar o aspecto social de um texto literário
um dos integrantes da obra e não o seu determinante.
Nas obras de Rubem Fonseca, em geral, observa-se que os personagens, especialmente
os protagonistas, são solitários, amorais, violentos e têm
sua sexualidade bastante aflorada. Sexo e violência são quase que
partes integrantes um do outro, indissociáveis. Os textos fonsequianos
trazem acontecimentos que podem ser vistos diariamente narrados nos jornais
ou mesmo vivenciados. São situações comuns de violência,
brutalidade, temperadas com sexualidade e fuga aos padrões impostos pela
moral.
Clelia Simeão Pires afirma que "Casos de violência de todos
os tipos, assassinatos e assaltos são expostos sem reservas com a maior
riqueza de detalhes e informações. Ao colocá-los em sua
literatura, ele não apenas reproduz, mas revela e transfigura o que está
ao seu redor, graças ao poder de penetração na realidade".
Em Bufo & Spallanzani não é diferente, nota-se isso
ao atentarmos ao comportamento do detetive Guedes e de Ivan Canabrava, depois
chamado de Gustavo Flávio, personagens que serão destacados neste
artigo.
Segundo Octávio Ianni, "Com o individualismo desenvolve-se o desencantamento
do mundo, algo também essencial da modernidade. Na mesma medida em que
se afirma e expande o âmbito da razão, modifica-se mais ou menos
drasticamente o significado da religião, superstição e
tradição da vida do indivíduo e da sociedade".
Esses são traços muito bem delineados nos personagens construídos por Rubem Fonseca, em especial
os protagonistas, que se mostram extremamente solitários, céticos,
não só em termos religiosos, como também no que diz respeito
às relações humanas, além de desapegados a qualquer
resquício de tradição, são indivíduos de
vida desregrada e sedentária. Aqueles que pertencem a classes sociais
elevadas, normalmente, vivem de aparências, imersos em casamentos mal
sucedidos, e quando não são mostrados dessa forma, em algum momento
da obra haverá uma circunstância que quebre a imagem de "seguidor
dos padrões de comportamentos".
Entre os personagens criados por Rubem Fonseca não há vítimas
nem algozes. Todos são, em alguma medida, um pouco de cada um, sem serem
vistos como injustiçados pelas situações a que são
submetidos, que são, em geral, condizentes com as escolhas feitas por
eles.
Guedes é o único indivíduo "honesto" no romance,
entretanto, mesmo em sua honestidade há transgressão. Isso transparece
em dois momentos basicamente: quando ele descobre que o assassino confesso de
Delfina Delamare havia sido, na verdade, contratado pelo marido da suposta vítima
para assumir o crime, a fim de que fosse evitado um escândalo que afetasse
sua imagem, diante da revelação, o detetive o liberta, abreviando,
dessa forma, os procedimentos legais necessários à libertação
de um preso; outro momento é a cena em que o policial se dirige à
casa de Eugênio Delamare para esclarecimentos e se depara com um dos seguranças
do empresário portando uma arma de uso privativo das forças armadas,
além de receber uma proposta de propina para que acelere o arquivamento
do processo, e, embora não aceite o dinheiro, não denuncia nenhum
dos dois crimes.
O policial é um homem de vida simples, que leva a sério seu trabalho
e se esforça para desvendar o mistério do assassinato de Delfina,
tendo comprovada ao final do romance sua tese inicial de que o assassino era
Gustavo Flávio, com o qual a esposa do empresário tinha um caso
extraconjugal.
Gustavo Flávio, por sua vez, é o narrador do romance. Bufo
& Spallanzani é, portanto, a história de sua vida, sendo
dividido em cinco partes. Foutre ton encrier, na qual é narrada
sua angústia de escrever, passando por questões de leitura, do
horizonte de expectativa dos leitores, a cobrança do editor até
as dificuldades de começar um texto literário. O trecho a seguir
é apenas uma das passagens em que essas questões são levantadas:
Perpassa por mim uma sensação aterradora, a certeza de que não conseguirei estender a mão centenas de milhares de vezes para molhar aquela pena no tinteiro e encher as páginas vazias de letras e palavras e frases e parágrafos. Então me vem a convicção de que morrerei antes de realizar esse esforço sobre-humano. (...) Como você sabe, não consigo escrever à mão, como deveriam escrever todos os escritores, segundo o idiota do Nabokov.
Meu Passado Negro é a segunda parte do romance, nela o narrador
relembra os tempos em que ainda se chamava Ivan Canabrava e as complicações
em que se envolveu na época, indo de uma investigação até
um manicômio judiciário, por fim, a fuga e os dez anos que se passaram.
O Refúgio do Pico do Gavião é o segmento no qual
o escritor resolve, por indicação de Minolta sua amiga e companheira
ocasional, se isolar num local de difícil acesso para tentar escrever
o romance homônimo ao aqui referido.
A Prostituta das Provas, momento do romance em que Guedes encontra uma
testemunha que incrimina Gustavo Flávio e embarca para o local em que
o escritor se encontra.
E, por fim, a última parte, A Maldição, momento
em que o narrador retoma as questões referentes ao fazer literário
e fala das dificuldades de finalizar um romance. Além, é claro,
de ser desvendado e resolvido o mistério central, a morte de Delfina
Delamare, e se concretizar a ameaça feita por Eugênio ao descobrir
o caso amoroso de sua esposa com o escritor, extirpando, conforme prometera,
os testículos do amante de Delfina.
Gustavo Flávio é um homem cansado, que narra, ao longo do romance,
a história trágica de sua vida, com seus crimes, omissões,
amores, desamores, prazeres e tragédias. Sua relação com
as mulheres é superficial, problemática e efêmera, ama algumas
delas, mas deixa de amá-las com igual facilidade. O escritor é
muito mais transparente ao leitor do que o policial, visto que a história
é contada integralmente sob sua ótica, suas impressões
e sua voz.
Bufo & Spallanzani evidencia a solidão do homem contemporâneo,
os medos, os "pecados". As diferenças de padrão de vida
entre, por exemplo, Guedes, Gustavo Flávio e Eugênio Delamare,
evidenciam as discrepâncias sociais, a possibilidade que este último
tem de cometer vários crimes e não pagar, a princípio,
por eles, enquanto o escritor se esforça bravamente para esconder os
crimes que cometera por saber que o policial o investigava. Além disso,
a própria descrição dos lugares em que mora cada um dos
três personagens mostra quão distintos socialmente eles são
entre si.
Diante das colocações acima, pode-se reafirmar que os aspectos
sociais na obra analisada são bastante nítidos e delineados com
muita clareza, fazendo com que o leitor de tal livro se identifique mais facilmente,
posto que os traços humanos básicos, tais como: moralidade, ética,
sexualidade e violência, se fazem presentes de modo desarmônico
e desmedido, como deve ser a boa obra de arte.