"A gerência vai estar transferindo 3 mil reais de sua conta."
Quem falar ou escrever uma frase assim atualmente corre o risco de ser ridicularizado.
Culpa do gerúndio (e de sua junção com os verbos ir e estar),
tachado de "assassino" do idioma por alguns gramáticos e formadores
de opinião da mídia. Esse gerúndio é vítima
da irritação dos usuários com seus maiores divulgadores,
os operadores de telemarketing, que nos obrigam a sofrer para ter acesso telefônico
a serviços de empresas. Mas será que o equívoco nesse processo
é justamente o use do gerúndio? Seria o gerúndio um erro
gramatical da mesma ordem de falhas como "eu dispor" em vez de "se
eu dispuser" ou "interviu" em vez de "interveio". E afinal
de contas, o que é que o gerúndio está "assassinando"?
Para desprestigiá-lo, um observador afirmou que o gerúndio é
uma firula desnecessária, um drible a mais na comunicação.
Dizem, por exemplo, que "estar cuidando" tem o mesmo sentido que "cuidar".
Mas todos nós temos o direito de usar ou não usar certa palavra,
expressão ou locução. Qualquer idioma serve às intenções
comunicativas dos seus falantes. Um determinado usuário pode dizer "vamos
estar cuidando do seu caso" quando tem interesse em expressar continuidade,
cordialidade ou polidez ao passo que outro falante pode desejar ir direto ao ponto,
recorrendo a forma simples: "Vamos cuidar do seu caso" - que caracteriza
um tratamento mais descomprometido ou "seco".
Outros falantes alegam que "vai estar transferindo" significa que
repetidas transferências de dinheiro serão feitas pela agência
bancária. É uma interpretação pessoal, que nada tem
a ver com as regras da gramática. Além disso, qualquer cliente sabe
que os bancos cuidam bem de suas contas e nunca vão esbanjar dinheiro fazendo
transferências à toa. Ainda mais levando-se em conta a voracidade
da CPMF.
A campanha contra o gerúndio, creio, é fruto de preconceito lingüístico
sem embasamento numa pesquisa de campo entre os diferentes tipos de usuários
de português em diferentes contextos. Pergunto por que os desafetos do gerúndio
condenam a frase "Ele vai estar chegando na parte da tarde" quando os
mesmos aceitam tranqüilamente a presença dos verbos modais: "Ele
pode estar chegando, ele deve estar chegando, ele tem de estar chegando na parte
da tarde"?
Subjacente à polêmica em torno da campanha de cassação
do gerúndio, existe uma vontade geral de colocar o idioma numa redoma e
não reconhecer que ele muda ao longo do tempo. O português da época
de José de Alencar é diferente do português contemporâneo.
Todas as línguas vivas inovam graças à criatividade dos seus
usuários. Alguns críticos, com o intuito de proteger e manter o
idioma estável, implicam com novos verbos, como "disponibilizar",
novos substantivos como "descatracalização", novos adjetivos
como "imexível" e "descuecado" ou até com estrangeirismos
(sem equivalentes em português) como "dumping" e "ombudsman".
Para tentar banir o gerúndio do idioma, alguns observadores questionam
as credenciais do mesmo e sugerem que ir+estar+verbo no gerúndio é
resultado da invasão sintática do inglês. Essa crença
não procede porque, em primeiro lugar, os falantes em questão nem
sempre dominam o inglês o suficiente para o idioma estrangeiro interferir
no português. Em segundo lugar, o português brasileiro apresenta uma
variedade de gerúndios - e o inglês não. Alguns exemplos:
"Olha, está querendo chover!", "Não estou podendo
tirar férias agora". Cabe observar também que os idiomas francês
e alemão não têm gerúndios. É a presença
no idioma de uma sentença como: "O plantonista está atendendo
amanhã na parte da tarde" que serve como "ponte" para a
realização de: "O plantonista vai estar atendendo amanhã
na parte da tarde". Na verdade, ao lado de formações como o
infinitivo conjugado ("para comprarmos"), a mesóclise ("dir-se-á")
e o futuro do subjuntivo ("se ele der"), a presença de gerúndios
contribui para diferenciar o português de todas as outras línguas.
É como Zeca Pagodinho e caipirinha: só o Brasil tem.
(publicado em "Super Polêmica" - Revista Superinteressante, março/2005)