Carlos Drummond de Andrade, o nosso Poeta Maior, disse que o maior poeta brasileiro
era Manoel de Barros. Muitos torceriam o nariz para essa afirmação.
O próprio Manoel de Barros, mais tarde, disse que o nosso melhor poeta
era João Cabral de Melo Neto. E diz da Geração de 45, a
que ele e João Cabral pertencem cronologicamente: Achava e acho
ainda que não é hora de reconstrução. Sou mais a
palavra arrombada a ponto de escombro. Sou mais a palavra a ponto de entulho
ou traste. Tem consciência crítica, conhece o que é
um poema, objeto fechado em si, como na poesia de João Cabral, e sabe
que a sua poesia é feita de restos, restolhos. Ele como que se compraz
em brincar com as palavras, virá-las e revirá-las nos dedos: Não
tenho outro gosto maior do que descobrir para algumas palavras relações
dessuetas e até anômalas.
Virou folclore vê-lo como o poeta pantaneiro, justificando-se assim a
exuberância do Pantanal na sua poesia. Nada mais errado. Não é
um mero deslumbrado com a natureza, mas um artífice das palavras: A
simples enumeração de bichos, plantas (jacarés, carandá,
seriema, etc.) não transmite a essência da natureza, senão
que apenas a sua aparência. Aos poetas é reservado transmitir a
essência. Mas como? Aprendeu com Oswald de Andrade que o trabalho
poético consiste em modificar a língua e com Rimbaud que a visão
do poeta é um imense dérèglemente de tous les sens.
Cita Guimarães Rosa: A poesia nasce de modificações
das realidades lingüísticas. Ou Leo Spitzer: Todo desvio
nas normas da linguagem produz poesia. Mas vai muito mais além:
Instala-se um agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das
palavras. A chave está mais no termo insana do que
apenas em agramaticalidade. E vai repetindo, não só
por repetir, mas, nessas variações de uma mesma nota, para enfatizar:
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema./ Há
que se dar um gosto incasto aos termos./ Haver com eles um relacionamento voluptuoso./
Talvez corrompê-los até a quimera./ Escurecer as relações
entre os termos em vez de aclará-los. / Não existir rei nem regência./
Uma certa luxúria com as palavras convém. Prestemos atenção:
escurecer, incasto. Propõe uma volta à
infância da palavra, numa visão primordial do mundo: Um novo
estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto
coisal, larval, pedral etc. / Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica,
edênica, inaugural / Que os poetas aprenderiam desde que
voltassem às crianças que foram / Às rãs que foram
/ Às pedras que foram./ Uma certa luxúria com as palavras convém.
Assim se justifica, se fosse preciso se justificar: O que não sei
fazer desconto nas palavras. / (...) Concluindo: há pessoas que se compõem
de atos, ruídos, retratos. / Outras de palavras. / Poetas e tontos se
compõem com palavras. Sabe que o poema é uma forma, um objeto,
mas em estado de alucinação: Designa também a armação
de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons etc. geralmente
feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados.
São objetos lúdicos, mas com os sentidos fora do normal,
desregrados.
Sempre valoriza a luxúria da palavra, a mais abjeta: Sou mais a
palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta. / Sou mais a palavra
ao ponto de entulho. É a busca da pureza, da infância do
verbo: Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia.
Quem come, pois, do podre, se alimpa. Isso diz o Livro.
A leitura de Manoel de Barros é uma descoberta renovada. As infinitas
possibilidades da poesia, que nasce como quem não quer nada, de onde
menos se espera. É a poesia pura, de quem vê o mundo pela primeira
vez, como a criança ou o louco: Poeta é um ente que lambe
as palavras e depois se alucina. / No osso da fala dos loucos tem lírios.