"Campo Geral", de Guimarães Rosa, é a história
da descoberta do mundo de Miguilim, um meninozinho de oito anos perdido num
ponto perdido do sertão de Minas Gerais. Nem nome e sobrenome tinha,
como os irmãos menores. Era só Miguilim. Saiu uma vez dali numa
viagem de dias a cavalo para ser crismado e soube na cidade que o Mutum, o lugar
onde ele morava, era bonito. Alguém de longe disse. Era como se Miguilim
nunca tivesse visto o Mutum. A mãe achava a maior tristeza do mundo viver
ali. Logo, era um lugar triste, não bonito.
Miguilim vai descobrindo o mundo. Começa pela morte. Uma vez tomou uma
pedrada entre os olhos, "não podia enxergar, uma coisa quente e
peguenta escorria-lhe da testa". Essa lembrança se mistura com outra,
ele numa bacia, nu, e o pai esfaqueando um tatu, deixando-lhe o sangue escorrer
por cima. "Para ele poder vingar", depois de uma doença brava.
Uma cachorrinha quase cega (é a primeira vez que se fala em cegueira?)
que o pai dera para uns tropeiros. A primeira perda de Miguilim. E a imagem
do pai, severo, violento, brigando com a mãe e o mundo. Miguilim de castigo
porque não queria que o pai batesse na mãe. Não imaginaria
nenhuma história dela com o tio, só não quer que sofra.
Pensa na morte, tem medo de morrer sozinho, "queria que a gente todos morresse
juntos..." Mais ladino o irmão menor Dito, que "não
queria ir para o céu menino pequeno." Como uma premonição.
Miguilim que inventou que ia morrer. Ficou de cama, se deu dez dias para morrer.
Não comia, definhava. Até que veio um curandeiro das vizinhanças,
disse que ele ia morrer, mas daí a uns setenta anos. Miguilim quase ficou
alegre, naquele mundinho dele, onde nunca acontecia nada.
Acontecia a morte. Como a do peste do Patori, filho de um vizinho. "Dito,
você não gosta de conversar do Patori, que morreu?" Pois é,
o Mutum era um lugar muito triste.
Um sonho era ver o mar. "Mãe, a gente então nunca vai poder
ver o mar, nunca?" O Dito sempre dava as respostas certas: "A gente
é no sertão." A tristeza é tanta que Miguilim não
se conforma: "Mas às vezes eu queria avistar o mar, só para
não ter uma tristeza..."
Difícil aprender a vida, gente. Doído só. "Ele bebia
um golinho de velhice."
A descoberta maior era a da morte, danada de ruim. Não é que a
danada levou até o Dito, o melhor de todos? "Como o pobre do meu
filhinho era bonito..." Miguilim via mais a tristeza da mãe, para
não ver a dele mesmo.
Um dia a violência do pai explode. Miguilim fez uma má-criação,
o pai não se cansava de bater. Parecia que queria matar o pobre. Miguilim
pega raiva do pai. Até que fica doente, agora está para morrer
de verdade. Estranha que o pai se compadece dele, teria amor no coração
de um bruto?
Quando Miguilim sara, vem a notícia da triste sina do pai. Tão
bruto sob a brutalidade da vida, acabou matando alguém. Difícil
de entender a vida, não? Vai se tornar mais difícil...
Por fim, chega um senhor de fora: vê que Miguilim aperta os olhos para
ver, empresta-lhe os óculos. O problema de Miguilim era não enxergar
o Mutum, para ver como era bonito. Era triste também, de tão pobre,
mas era bonito... Miguilim vai para a cidade com o homem, tratar os olhos, estudar.
Mas antes vê o Mutum, a beleza escondida. Muitas vezes a gente não
vê a vida, para saber como é bonita.
Uma professora disse que um conto meu não era bom: não era acessível
ao público. Talvez a sua linguagem lembrasse a de Guimarães Rosa.
Podia não ser bom e podia ter esse defeito. Mas como ela disse, coitada,
estava eliminando Guimarães Rosa da literatura. Não subestimem
o leitor, não o chamem de burro. Algumas palavras de "Campo Geral"
o dicionário não traz, alguma frases têm mais poesia do
que significado, mas quanta substância humana no sangue daquela linguagem!
O autor apresenta a história como um poema: está carregada de
poesia. Não entreguei o autor de bandeja: quem não leu, deve ler,
e quem já leu, pode recordar: há muita substância humana
e beleza para nos comover na linguagem de Guimarães Rosa.