Este artigo tem por finalidade abordar a sexualidade feminina no âmbito da literatura. Partindo de temas como a masturbação, a puberdade e o encontro sexual entre os sujeitos, busca-se explicitar a visão feminina acerca do sexo em poemas de Adélia Prado e de Maria Lúcia Dal Farra, construindo pontes entre as suas poesias, num trabalho comparativo. A forte ligação com a casa, a cozinha e o casamento são o elo entre Prado e Dal Farra. E é neste cenário caseiro que as representações de sexualidade se dão, trazendo à tona todo o erotismo que permeia a relação conjugal e o contato da mulher com sua genitália. Através de imagens poéticas que denotam o universo erótico do feminino, Adélia e Maria Lúcia desconstroem paradigmas herdados de uma tradição machista que não consegue ver a mulher como sujeito de sua intimidade.
<>Palavras-chave: Adélia Prado, Maria Lúcia Dal Farra, sexualidade feminina, transgressão, metalinguagem. Há muita metalinguagem na poesia de Adélia e de
Maria Lúcia Dal Farra, ou seja, os seus poemas acabam por explicar sua
própria poética. Para discutirmos isso, consideramos os poemas
"Dionéia", de Dal Farra, e "Festa do corpo de Deus"
e "A boca", de Adélia Prado.
Quando Maria Lúcia fala "com as mãos em concha te acolho",
temos a idéia da mão ao segurar o lápis e ao mesmo tempo
o formato da genitália feminina. Esse tipo de ambigüidade é
criado propositalmente, pois Maria Lúcia deseja que o leitor perceba
que sua poesia tem no sexo uma das suas temáticas favoritas. E continua:
hóspede almejado,
para deslizares pelas minhas palmas
(meu texto)
rente aos pelos que sedutores te roçam
no antegozo do meu irremissível poço.
Esse hóspede almejado pode ser o lápis, que a mão espera para começar a escrever o texto. O lápis, por sua vez, é um instrumento fálico, representando o pênis almejado pela vagina. Ao falar "meu texto", Maria Lúcia faz alusão a sua poética, trazendo um texto que fala do texto, a poesia que explica a poesia, e o universo da sexualidade é revelado pelo poema que se torna o porta-voz da poetisa, como faz Adélia em "Festa do corpo de Deus":
Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão
Vemos que, para Adélia, a poesia é a encarregada
de anunciar a paixão, de anunciar o desejo.
Voltando à "Dionéia", percebemos que escrever poesia
é como fazer sexo, para Maria Lúcia Dal Farra. O diálogo
entre sexo e poesia é constante, os elementos eróticos se confundem
com o fazer poético, os instrumentos usados para a escritura do poema
se confundem com elementos do sexo, escrever poesia é algo orgânico,
é como se a poesia se desentranhasse dos poros da poetisa. Da mesma forma,
também para Adélia, escrever poesia é algo íntimo,
como podemos ver em "A boca":
Escrever me subjuga e não entendo,
tal qual comer, defecar,
molhar-me de urina e lágrimas.
Para Alves, é
curioso, na estrofe acima, o fato de colocar a escrita no mesmo plano das necessidades biológicas, como comer, defecar, urinar. Nela aparece o que denominamos de desierarquização na poesia [...]. Esta aproximação revela que o ato de escrever é corporal, envolvente. (ALVES, 2007, p.15)
Então essa poesia que se aproxima do carnal, do orgânico,
aquela poesia que vai ao "rés-do-chão", busca nas entranhas
o verdadeiro significado e traz o discurso forte e denso.
É a poesia quem traz o discurso feminino, ela é quem carrega a
missão de trazer à tona o universo erótico da alma feminina.
E isso Adélia Prado e Maria Lúcia Dal Farra fazem muito bem, como
poderemos perceber ao longo deste artigo.
Tratado de forma bem peculiar pelas duas poetisas, o encontro
sexual entre os sujeitos é um dos temas mais corriqueiros em sua poesia.
Tomemos como objetos de análise os poemas "Dionéia"
- de Maria Lúcia - e "Casamento" - de Adélia Prado.
Para Adélia Prado, o erotismo revela-se na relação entre
marido e mulher, onde o cotidiano é o pano de fundo para as expressões
de sexualidade. O contato com o marido nos momentos mais "triviais"
da relação conjugal, como escamar peixes, faz com que o erotismo
permeie o lugar a partir de toques, movimentos e olhares, o que vai culminar
na relação sexual:
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez enquando os cotovelos se esbarram
ele fala coisas como 'esse foi difícil',
'prateou o ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
O sexo é partilhado, homem e mulher estão no mesmo nível.
Ele quer, e ela consente. A relação só se concretiza pelo
desejo dos dois, pois um completa o outro. "O instante de convivência
[...] escamando os peixes, ativa o encantamento inicial que penetra o espaço
e o tempo [...] e conduz para um final de verdadeira celebração"
(ALVES, 2007, p.13-14) onde, juntos, marido e mulher atingem o orgasmo.
Alguns podem ver submissão na atitude feminina que o poema configura.
Contudo, a mulher o faz porque quer. Outra coisa importante é o fato
de ela ajudar o esposo a escamar, ou seja, ela não trabalha sozinha,
existe uma cumplicidade entre os dois, tal como na hora do ato. Adélia
nos traz uma mulher transgressora, pois ela quer e vai atrás de seus
desejos. É essa mulher a responsável pelo erotismo do instante.
É porque ela diz sim aonde outras diriam não, que o momento acontece. Sem a anuência dela não haveria noivo e noiva, haveria outra história, talvez menos mágica, talvez menos erótica. [...] As mulheres gostam deste poema, mas talvez por reconhecimento de uma força atuante, quando o que normalmente existe é passividade e resignação, ou pelo contrário, a obrigatoriedade da negação e revolta. Este não é o sim imposto por modelos externos, por teorias masculinas, pela moral construída sob bases que formatam limites aos fluxos da vida na mulher. Este é sim de quem assume as rédeas de sua vida e com ela pode fluir. Hoje é sim, amanhã pode ser não, porque amanhã é outro dia fora e dentro de si mesma. (STEINER, 2005, p. 7)
Também para Maria Lúcia Dal Farra, a mulher tem
uma força atuante no sexo, uma vez que é a vagina quem "engole"
o pênis no momento da cópula. Isso pode ser percebido logo no título
do poema, "Dionéia", já que esta é uma espécie
de planta carnívora, caracterizando assim aquilo que devora e engole.
A mulher agora é quem diz: "eu quero", "eu lhe desejo",
desconstruindo tradições que não aceitavam o desejo feminino.
Essa mulher agora é o centro da relação sexual, ela é
quem dita qual será o momento propício, pois é a dona de
todos os sortilégios que enlouquecem o homem. O discurso falocêntrico,
de que é o pênis quem "come", é quebrado, pois
é a genitália da mulher a responsável por propiciar prazer
ao falo.
Com as mãos em concha te acolho,
hóspede almejado,
para deslizares pelas minhas palmas
(meu texto)
rente aos pelos que sedutores te roçam
no antegozo do meu irremissível poço.
Capturadora de alados,
no trajeto em que pouco a pouco te engolfo
(enquanto fecho a minha ostra e em breu te envolvo)
favoreço-te com água e luz intensas:
É a genitália lubrificada quem hospeda o pênis ereto e favorece a "água" pela qual ele pode deslizar até "mergulhar" no poço inevitável. E ela o captura, o envolve, o molha, propicia o prazer tão desejado.
companheira de Zeus, mãe de Afrodite,
eis porque luzente e lúcida sou dita -
afrodisíaca.
Dos folguedos do amor, mestre anciã,
conheço-lhes decor toda a ciência: passei-a
por herança a Vênus. Flecha de neto meu são os
espinhos - as cerdas com que então te brindo
enquanto deslizas prazeiroso pelos líquidos
que fabrico para a nossa mútua orgia
- a fim de que ali leias
a festa, os sortilégios.
A mulher é quem desperta o desejo; ela, que é feita
de gozo, é a responsável pela afloração da libido,
por isso afrodisíaca. Na versão de Homero para o nascimento da
deusa Afrodite, temos a deusa como sendo filha de Zeus com Dione (ninfa do mar),
e isso explica a escolha do título "Dionéia", pois a
poetisa tece uma aproximação entre a vagina e essa planta pelas
características que podem ser atribuídas a ambas: ser carnívora
e encontrar-se em lugares úmidos. E a ligação do órgão
feminino com uma ninfa do mar não é à toa, pois isso faz
referência à maresia, aludindo aos cheiros exalados pela genitália
feminina que desperta a libido do homem.
A mulher é a dona da experiência, já que foi a responsável
pela beleza sedutora de Vênus (Afrodite), e é também quem
ensina, pois possui a condição de "mestre anciã".
A alusão a Eros, em "flechas de neto meu", existe para enfatizar
o símbolo do desejo, onde a energia que o rege é a libido. Ela
é quem revela os sortilégios no instante do ato.
Ah, doces percursos, trilhas de açúcar,
redemoinhos, limos, línguas, gatilhos,
sugadores, garras, nervuras, cera -
manteiga!
Te conduzo à voragem,
ao fundo do despenhadeiro
ao incomensurável -
à morte,
a mais sublime,
porque fruída de ais de orgasmo e deleite.
Maria Lúcia cria gradações que elucidam
o momento do orgasmo, onde o ato atinge seu clímax: são movimentos
circulares, sabores, lubrificação, prenúncio de gozo, arranhões,
nervuras, sêmen. É importante enfatizar essa constante quebra do
discurso falocêntrico, pois podemos perceber que a mulher conduz o homem
para o orgasmo: ela é quem o "mata" de prazer e quem é
possuída pela lascívia dominadora do homem.
Adélia e Maria Lúcia nos trazem mulheres que são donas
de suas vidas e que escolhem o momento certo para se entregarem ao erotismo.
São mulheres que não estão mais sujeitas às vontades
masculinas, que tomam iniciativas na hora do sexo somando com o homem. Não
temos mais o falo como centro, pois é a mulher a responsável pelo
momento de erotismo na relação conjugal. A relação
sexual só existirá com o consentimento dela.
Atrelada ao tema da masturbação, as autoras trazem
as questões da puberdade e da descoberta do prazer à tona, desmistificando
tabus que há muito vinham colocando o assunto na obscuridade.
Pondo em questão os poemas "A menina e a fruta" - de Adélia
Prado - e "Puberdade" - de Maria Lúcia - poderemos perceber
que a mulher do século XXI não mais vê suas transformações
como algo tenebroso e sujo, pois percebe que é a partir dessas transformações
que surge a descoberta do prazer.
No poema "Puberdade", Maria Lúcia Dal Farra desmistifica "a
noção de vergonha imposta pela sociedade moderna acerca da menstruação,
que é vista por muitos como algo sujo, ruim e subjugador" , mostrando que é justamente o contrário,
pois a descoberta do sexo traz toda a beleza do feminino. Vejamos na íntegra
o poema:
Puberdade
A Lúciana da Lena Cunha
Na cozinha
mamãe espreita o bolo de morango com coco
recém-tirado do forno.
Besunta-o agora com a calda
(que o ata).
Da varanda vejo a massa operosa das nuvens
que se juntam para a chuva.
Furo o bolo com o dedo.
O sumo transborda:
a tarde está molhada de vermelho.
A escolha das imagens, o ambiente caseiro, o coloquial da situação
descrita são os pontos centrais do poema, pois toda a intencionalidade
da autora se encontra neles, a idéia é mostrar o quão comum
é a questão da descoberta da sexualidade. A mãe, representando
a figura experiente, divide aquele momento de descoberta com a filha. A menarca
vem para representar o amadurecimento sexual, é a menina que se torna
mulher.
Esse despertar para a sexualidade nos mostra essa menina que se descobre enquanto
sujeito feminino. A puberdade traz para a menina a responsabilidade de ser mulher
e de ser o sexo sábio, que ensina. Percebemos isso no poema "A menina
e a fruta" de Adélia Prado, onde uma menina, ao "colher uma
goiaba do pé", ensina ao sujeito poético a beleza guardada
no eu feminino:
A menina e a fruta
Um dia, apanhando goiabas com a menina,
ela abaixou o galho e disse pro ar
- inconsciente de que me ensinava -
"goiaba é uma fruta abençoada".
Seu movimento e rosto iluminados
agitaram no ar poeira e Espírito:
o Reino é dentro de nós,
Deus nos habita.
Não há como escapar à fome da alegria!
A escolha das imagens não é nada arbitrária.
Existe uma significância na escolha das frutas, tanto no poema de Adélia
quanto no de Maria Lúcia, pois podemos perceber de que se trata de elementos
representativos da genitália feminina.
A goiaba e o morango assemelham-se bastante ao órgão sexual feminino,
centro das atenções nos poemas analisados. Ele é o instrumento
de expressão da sexualidade feminina, pois é a partir dele que
as transformações são reveladas. Adélia genialmente
sacraliza a genitália feminina dizendo que a "goiaba é uma
fruta abençoada", e isso rompe com a idéia de que o sexo
é pecado, sendo, ao contrário, uma benção dada por
Deus. A poetisa vai mais fundo ao dizer que "o Reino é dentro de
nós, Deus nos habita": o humano passa a ser o sacrário que
guarda o divino, portanto, suas atitudes são divinas, são naturais
ao ser. Este deve matar essa "fome da alegria", essa fome orgânica,
por isso as poetas representam a genitália feminina com frutas, pois
essa fome de sexo deve ser saciada.
É muito transgressor o discurso de Adélia e Dal Farra. Elas trazem
uma mulher sem medo e desprendida dos preceitos patriarcais da sociedade. São
mulheres que não se anulam e que se auto-afirmam enquanto seres humanos.
Um dos temas que ligam essas duas poetisas é a questão
da masturbação feminina. Ainda visto com muitas restrições,
o tema é tratado com naturalidade, o que mostra o quanto o discurso feminino
está se tornando transgressor dentro da literatura.
Comecemos pelo poema "O pêssego", de Dal Farra. O próprio
título já nos traz uma carga de sentido, uma vez que a figura
de tal fruto assemelha-se ao órgão sexual feminino.
Na textura da fruta
afundo minha unha:
estará madura?
Desponta a abaulada penugem
a meia lua
- impressão digital do meu gesto
indeciso
entre afeto e arranhadura.
É através do toque que a mulher excita o seu órgão genital, num momento de puríssima intimidade onde ela encontra prazer ao se masturbar. Essa experiência é configurada por meio da descrição de toques e líquidos, como também faz Adélia Prado em "O amor no éter" nos versos abaixo, criando uma imagem poética a partir de um jogo de idéias.
Há dentro de mim uma paisagem
Entre meio dia e duas horas da tarde.
Adélia faz um jogo genial com a figura dos ponteiros do relógio, que sobrepostos formam a imagem de um delta, que por sua vez nos lembra a região púbica feminina:
Aves pernaltas, os bicos enfiados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniços na margem.
Percebemos que esse lugar, "entre meio dia e duas horas
da tarde", não se trata de um espaço de tempo, nem de um
lugar abstrato que habita o imaginário da poetisa, mas é sim um
lugar concreto, que pode ser tocado, ou seja, a região do púbis,
onde os dedos - figurados como aves pernaltas - entram na cavidade lubrificada,
como a unha que adentra o pêssego no poema de Maria Lúcia Dal Farra.
As mulheres, representadas nos poemas, são seres humanos suscetíveis
ao prazer sexual como qualquer um. São mulheres que não têm
vergonha de se mostrar como tais, contrariamente ao que ocorria na era colonial,
onde o discurso libertário era inaceitável, sobretudo se veiculado
por uma mulher:
a sexualidade feminina na época colonial manifestava-se sobre vários aspectos, sempre esgueirando-se pelos desvãos de uma sociedade misógina e suportando a culpa do pecado atribuído a ela pela igreja. A mulher podia ser mãe, irmã, filha, religiosa, mas de modo algum amante. (ARAÚJO. 2007, p.73)
Então, mulheres como Adélia Prado e Maria Lúcia
Dal Farra vêm quebrar essa tradição misógina, trazendo
uma figura feminina que se desprende dos paradigmas de uma sociedade patriarcal
e que via a mulher como objeto de domínio masculino, tolhendo-a do prazer
de ser mulher.
"O pêssego" e "O amor no éter" nos trazem aquela
mulher que quer sentir seu corpo, que quer se conhecer e buscar experiências
novas. O toque é uma dessas novas experiências, esse diálogo
tátil com a genitália faz com que a mulher encontre as formas
com as quais ela possa sentir mais prazer na relação sexual. Adélia
e Maria Lúcia descrevem brilhantemente essa mulher que não se
priva do contato com o seu corpo e muito menos do orgasmo. Como podemos perceber
nos versos abaixo:
Quero escavar-te até encontrar (O amor no éter - Adélia Prado) |
Que sente a fruta? Do poço da sua seiva porque (O pêssego - Maria Lúcia Dal Farra) |
Ela toca-se, sente prazer e reflete sua condição de mulher. Descobre que o gozo é algo inerente ao seu ser, e disso ela não pode - nem quer - se privar. É interessante observar a forma bela como é descrito o orgasmo pelas poetisas: para Adélia é como se ela voasse feito borboletas, o amor atravessa o natural como se ela saísse de si; para Dal Farra, é sinônimo de alegria, e o sorriso marca o momento do orgasmo.
O erotismo permeia o cotidiano das mulheres de Adélia
Prado e Maria Lúcia Dal Farra. A forte ligação com a casa,
o casamento e a cozinha são elos entre essas duas poetisas que traduzem
o universo da sexualidade feminina nos momentos mais prosaicos da relação
conjugal. E é isso que faz com que sejam expurgados os preconceitos com
relação à sexualidade feminina, descartando a "culpa
original" herdada do mito do Éden: a mulher agora se aceita e não
tem mais vergonha de seu corpo. A relação com o marido, o contato
com a genitália, a manifestação do desejo se dão
muitas vezes no cenário caseiro, onde a mulher é a protagonista.
Como vimos em "Casamento", o universo cotidiano é permeado
pelo erotismo do contato da mulher com o marido, onde ambos dividem uma tarefa
prosaica, mas da qual eles tiram a sensualidade necessária para uma relação
sexual.
O sensual fundido com o coloquial é o que podemos apreender também
no poema "Dia", de Adélia Prado, e no belo "Segredos Culinários",
de Maria Lúcia Dal Farra.
Dia
As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -,
as barbelas e as cristas avermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.
Vemos em "Dia" o quanto o erotismo está entranhado no cotidiano. Observando o comportamento das galinhas, a mulher reflete sobre a relação sexual, e mesmo que seja surpreendida pelo desejo ela não o refuta.
A mulher que habita a casa, portanto, gosta de sexo. Embora ainda se surpreenda com o desejo, ela não o afasta de si constrangida, mas pelo contrário, mantém seu desejo ativo, participante, determinado. Não se vê na poesia de Adélia, a mulher como objeto sexual a ser admirado passivamente, a mulher que apenas realiza os desejos sexuais do homem. A mulher está onde estão as torrentes sexuais, mesmo que seja no quintal da casa, na cozinha, no terreiro observando as galinhas. Os sonhos não estão apenas simbolizando o reprimido, o que não é vivido por medo ou vergonha, mas eles também deságuam enfrentando perigos. A mulher que habita a casa tem o direito de escolha, e só a liberdade traz esta capacidade. (STEINER, 2005, p.7)
A descrição do ato é perfeita: a posição da mulher no instante do ato, a mulher que percebe que não há nada de imoral naquilo, as barbelas e as cristas representando a genitália excitada, o pescoço da galinha representando o pênis, e a mulher que faz e gosta do sexo. É evidente a existência do erotismo no mundo cotidiano das mulheres, e Adélia traduz isso de forma magnífica, assim como Maria Lúcia em seus "Segredos culinários", onde o sexo está atrelado à cozinha, usando-se de imagens prosaicas para representar a relação entre homem e mulher.
Antónia se doa toda à cozinha.
Quanto às barquinhas de berinjela,
erra na mescla do recheio com queijo:
o marido carregou os filhos
lá pras bandas de Minas
e as bordas entornam,
os cascos murcham;
o legume naufraga sem rumo
na angústia do forno.
Em "Segredos culinários", o erotismo surge a partir das lembranças de Antónia, que ao cozinhar encontra referências aos momentos de sensualidade com marido. Vejamos a representatividade das imagens poéticas utilizadas: berinjelas recheadas com queijo, o que nos faz lembrar o sêmen dentro da vagina após a ejaculação; o legume naufragando no forno, o que faz referência à penetração. É fantástica a forma com que Maria Lúcia une erotismo com cotidiano. A ausência do marido faz com que ela reflita sobre os instantes que ela passou com ele, e é o contato com a cozinha, com o mais prosaico, que faz com que essas lembranças aflorem e que o erotismo permeie as cenas. Vemos ao longo do poema:
Na salada de chuchu, batata e cenoura,
nenhum escapa ao tom opressivo
da beterraba,
ativa cor que empresta cores funestas
também à boca de quem come.
Ao preparar a salada de chuchu, cenoura e batata - e a escolha dessas leguminosas não é mera coincidência - Antónia faz associação aos órgãos genitais masculino e feminino, onde o chuchu ao ser aberto ao meio lembra a vagina excitada; já a cenoura e as batatas lembram o pênis e os testículos. O vermelho liberado pela beterraba caracteriza o sangue, mostrando que tais lembranças causam dor para Antónia que não tem o marido ali para concretizar os seus desejos e fantasias.
Da alcachofra então
Antónia consegue um tento:
renega nela a flor que era!
Despetala-a com tal rigor
que em lugar do coração temos
(da pobre) a alma -
toda lancetada pelas farpas prontas
a se aplicarem na língua de quem reclama.
A abstinência faz com que Antónia tenha de se saciar, então ela toca-se, entrando em contato com sua genitália a fim de gozar. Retorna, portanto, a idéia da masturbação, já que a personagem sabe se dá prazer e suprir a falta de um homem. É uma mulher que não se subjuga e que tem consciência de que seu corpo é de domínio seu, pois, enquanto ser humano, também tem direito a suprir suas necessidades orgânicas, como o desejo sexual. Então, Antónia "despetala sua flor", a lubrifica e atinge o seu clímax ao transpassar-se do coração para alma, deleitando-se no orgasmo propiciado por suas mãos famintas.
Em compensação
a carne estufada com arroz
está um primor!
Antónia, por que é que choras?
- Não choro, corto cebola.
A lembrança do amado também volta na imagem "a carne estufada com arroz". Esta pode representar a vagina ejaculada, o branco do arroz faz referência ao liquido seminal expelido pelo homem. E por mais que estas lembranças, mescladas a falta do marido, façam Antónia chorar, ela não expõe sua dor, pois não deixa que ninguém veja seu sofrimento, escondendo-se astutamente atrás da imagem da cebola.
Através de imagens poéticas que denotam o universo
erótico do feminino, Adélia e Maria Lúcia desconstroem
paradigmas herdados de uma tradição machista que não consegue
ver a mulher como sujeito de sua intimidade. O discurso feminino quebra com
o falocentrismo de uma sociedade patriarcal, que nega a mulher enquanto ser
humano que tem seus desejos e fantasias.
Adélia Prado e Maria Lúcia Dal Farra nos trazem uma mulher que
não tem medo de falar de si mesma, que não tem vergonha do seu
corpo, nem de seus desejos. Ela expõe o que pensa e o que sente sem se
preocupar com o julgo da sociedade. Ela não precisa mais do homem para
dizer como se comportar, desconstruindo paradigmas que a anulavam. Também
não necessita do homem para contar seus sentimentos, como acontecia nas
Cantigas de Amigo do Trovadorismo, pois agora é ela quem segura o lápis
- em todos os sentidos - e se explica enquanto ser feminino.
Antes a mulher era explicada pelo homem. [...] Agora é a própria mulher que se desembrulha, se explica. Não esquecer que nossas primeiras poetisas encontraram naqueles diários e álbuns de capa acetinada o recurso ideal para assim registrarem suas inspirações, era naquelas páginas secretas que iam se desembrulhando em prosa e verso. (TELLES, 2007, p.671)
Adélia e Maria Lúcia são dessas poetisas que saem das cercas de seus quintais e saltam para o mundo; que se desembrulham, que se explicam e que trazem para a sua poesia a essência do ser-mulher.