É certo que um dos vetores que norteiam o texto da tragédia urbana
e brasileira Gota D'Água, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes,
foi Medéia (obra-prima composta por um dos três expoentes
da tragédia na Antiga Grécia, Eurípedes), bem como a riquíssima
mitologia grega, cujos arquétipos comportamentais (alguns) se mantêm
muito vivos ainda hoje nas literaturas brasileira e mundial (embora teóricos
haja que não aceitem válido o conceito "literaturas nacionais"),
e provavelmente terão vida eterna nesses dois ambientes artísticos
e também noutros, os mais diversos.
Mas não se trata duma releitura atualizada da famosa tragédia
grega, tão somente. Considerar Gota D'Água apenas por esse
prisma seria, quero crer, um reducionismo perigoso na medida que muito mais
riqueza há no texto de ambos os autores, além da valiosíssima
e inequívoca contribuição euripediana. Conforme o ângulo
a partir do qual a análise é feita, ultrapassa mesmo a intertextualidade
e adquire oxigênio próprio, independente. Como o filho que, não
obstante o nítido legado genético oriundo dos pais, possui personalidade
toda própria e inconfundível, sem, no entanto, negar sua origem.
Até por entender: seu berço em muito o auxilia na caminhada vida
adentro. Eis o motivo pelo qual Gota D'Água pode ser suficientemente
analisado sem que haja a premência de, volta e meia, rever essa ou aquela
passagem de Medéia. Exemplificando, visto que demonstrar torna-se
mister para a perfeita compreensão daquilo que se pretende verdade, exemplificando,
é fácil constatar que o espírito da personagem de Eurípedes,
Medéia, está como que "reencarnado" na Joana de Chico
Buarque e Paulo Pontes. Nem por isso seria razoável afirmar que esta
é uma nova roupagem daquela, apenas. Equivaleria a empobrecer a riqueza
própria da brasileiríssima personagem e, por via indireta, depreciar
injustamente o talento criativo de seus criadores.
Uma saudável maldição acompanha todo aquele sobre quem
é possível afirmar seja um artista: a convivência diuturna
com vários fantasmas que possuem o hábito de sacudir o espírito
criador, perfeitamente sabedores que com esse tipo de onça só
se mexe usando vara curta. E ela solta o rugido inquieta e faminta enquanto
não se satisfizer, aos fantasmas. Ou seja, enquanto a obra não
vier à tona, abandonar o paraíso das idéias e se materializar.
Em se tratando do escritor, enquanto os (as) personagens não tiverem
direito à vida, e essa vida ganhar um cenário. Ambos os elementos
coordenados por um terceiro, que muitos consideram a essência da ficção,
o enredo. Que, por sua vez, possui sua lógica interna, não necessariamente
linear ou realista. Aliás, à guisa de parênteses, é
bom se diga: quando o escritor é possuído pela utopia de pretender
"fotografar" a realidade por meio dum enredo fictício que venha
provocar no leitor a ilusão da verdade, costuma redundar numa obra de
baixa qualidade artística. Pois se muitas vezes nem mesmo o texto jornalístico
consegue alcançar semelhante objetivo! Aliás, outro adendo, a
palavra, escrita ou falada, talvez seja instrumento menos adequado a tão
pretensiosa tarefa.
Quando os fantasmas que rondam Chico Buarque e que rondaram Paulo Pontes (ele
faleceu em 1976) fizeram despertar as feras criativas residentes em cada um
e assim trouxeram à luz a tragédia Gota D'Água,
o intento dos autores não foi, por certo, "contaminar" a obra
de caráter fictício com a "verdade real". Prova disso,
quero crer, foi a feliz escolha, não exatamente original porém
muito enriquecedora, do verso como estrutura dos diálogos, tão
brilhantemente concebidos que, além de emprestarem um fulgor estético
ímpar ao texto (que não adquiriu a fisionomia da prolixidade,
por conta do uso preciso do coloquialismo), além disso nos arremete (o
verbo é esse mesmo, no sentido de sermos arremessados) ao colo da literatura
de cordel, pela capacidade de prender a atenção do leitor por
intermédio do vocabulário escolhido a dedos. Ora, na chamada "vida
real" ninguém trava conversas preocupado em rimar ou metrificar
seus enunciados, suas sentenças frasais. Outro fator revestido de suma
importância para que possamos exorcizar qualquer interpretação
estrábica da obra, que insista em considerá-la uma "reprodução
da realidade", é, como dizia o dramaturgo Nélson Rodrigues,
o óbvio ululante: os (as) personagens da peça só "existem"
na exata medida que estão sendo lidos (as) ou encenados (as). Nesses
dois atos eles ganham vida que, em considerável dose, trata-se dum empréstimo
de fantasias interiores que o leitor ou espectador cede com prazer. Falando
especificamente da ribalta, essa vida do (a) personagem por certo também
é fruto do brilho com que o intérprete realiza esse empréstimo.
Após consumado um ou outro gesto (a leitura ou a encenação),
se os personagens sobrevivem é na condição de lembrança,
o mais das vezes agradável, para as pessoas que "testemunharam"
suas atitudes e emoções. Noutras palavras: Joana, Jasão,
Creonte, Alma, Egeu e os outros, além do próprio enredo, não
representam a exata substância das pessoas reais ou situações
cotidianas. Antes, simulam alguns comportamentos e personalidades verossímeis,
escolhidos pelos autores meio a vários outros possuidores dessa mesma
característica, a verossimilhança, num encadeamento de situações
igualmente factíveis. A peça inteira, à luz dessa análise,
é um sumário de possibilidades condensadas em dois atos, cujo
marco inicial, aí sim eu concordo, foi a realidade brasileira vigente
à época em que os generais verdes-olivas comandaram uma ditadura
repleta de porões e dor ainda muito mal explicados.
Pretendeu Gota D'Água uma crítica ácida e contundente
ao capitalismo, sistema sócio-político-econômico que ganhou
fundamental impulso após o golpe militar ocorrido em 1964? É,
sem dúvida, uma interpretação válida e recorrente
no caso da obra em análise. Mas nessa face da moeda não apostaria
todas as minhas fichas. Primeiro, porque realmente quisessem expor os cancros
que o sistema provoca naquele que está espremido nas periferias sociais,
teriam os autores se abstido de numerosos recursos estéticos e cênicos,
que foram os responsáveis pela identidade artística de Gota
D'Água, em favor doutra estrutura dialógica que poderia muito
facilmente rolar ribanceira abaixo e cair no lodaçal do discurso panfletário,
o que resultaria em dois prejuízos, pelo menos: haveria um inexorável
empobrecimento da obra artística, que, ao subir o palanque do engajamento
político (tão em relevo naqueles sombrios tempos), desceria ao
limbo da memória nacional em três tempos: não sobreviveria
nem no presente, nem no passado, nem no futuro do teatro brasileiro; segundo,
tanto mais requinte numa obra de arte há, mais ela exige apurado exercício
de interpretação por parte daquele que recebe a mensagem. E Gota
D'Água apresenta muito mais de um caminho interpretativo possível,
o que não seria oportuno a quem pretendesse ter sua obra entendida a
partir duma única perspectiva. Por isso parece-me sintomático
que ao término da leitura muitas interrogações saltam aos
olhos, vivíssimas. Vejamo-las a seguir, lembrando que uma não
exclui a outra, necessariamente.
Jasão, que na Vila assume um comportamento marionete de seu manipulador,
Creonte, por várias vezes tenta minimizar a relevância da inadimplência
na qual se encontram os habitantes do conjunto (ao mesmo tempo em que sugere
ao futuro sogro "adoçar" a boca dos moradores) é a imagem
da cooptação capitalista daqueles indivíduos que, nascidos
e criados nas periferias e talentosos em alguma área, podem ser úteis
ao sistema, ou é uma referência à oposição
entre liberalismo social e capitalismo selvagem? Mais ainda, poderia ser um
símbolo da urgente necessidade dum Estado brasileiro democrático
(o que não excluiria por si só o capitalismo), que em tese permitisse
a escalada social do indivíduo mediante esforço próprio,
e pelo qual o povo e intelectuais ansiavam, em contraponto ao vigente Estado
autoritário; a maioria dos moradores aplaude as "medidas de profundo
alcance social" promovidas pelo personagem Creonte, por não enxergar
as reais intenções do proprietário capitalista (que se
escusa a discutir a questão nevrálgica, os juros), e, portanto
mostrar-se facilmente manobrável e muito útil à alimentação
do sistema ou o comportamento se justifica por considerarem eles ser melhor
qualquer paliativo a acordo nenhum?; o sentimento de vingança que Joana
tanto nutre existe porque ainda ama Jasão e é incapaz de engolir
a mágoa, fruto do abandono, ou por perceber que ela apenas serviu de
banquete sexual para ele enquanto estavam morando juntos? Outro detalhe: Joana,
no epílogo, morre apenas fisicamente, porquanto seu espírito estava
falecido já no início da trama. Então, ao assassinar os
filhos e cometer suicídio, há mais que o intento de presentear
o ex-marido com a culpa pelas mortes (em relação aos filhos, aliás,
a personagem sempre manteve um sentimento hesitante, amor e ódio, por
serem a lembrança viva do abandono): mais que pretender a consciência
de Jasão doesse, aflita de remorso, há a necessidade de materializar
o já expresso em muitos gestos dela, necessidade de, digamos assim, enterrar
a defunta.
Escusar-me-ei no presente trabalho de tricotar maiores comentários sobre
a sólida estrutura dos (as) personagens, tão bem construídos
(as) que por diversas vezes o leitor ou o espectador (lógico, nesse último
caso a competência do intérprete é crucial) é induzido
a esquecer o evidente: são criações ficcionais. O fenômeno
ocorre não por eles terem "um pé na realidade", mas
por serem extremamente fiéis à lógica interna da obra à
qual pertencem. São como planetas que orbitam em torno duma estrela:
cada um em ritmo de rotação adequado para que toda a galáxia
esteja harmônica. Redundante também seria o elogio à habilidade
com que os recursos cênicos foram utilizados: a música, sem que
possamos afirmar tratar-se dum musical; a iluminação dos diferentes
sets no palco, lembrando o recurso do "corte", linguagem pertinente
à TV e ao cinema; os diálogos realizados em sets diferentes, mas
completando-se e formando sentido uno.
No prefácio da 24ª edição da obra, publicada pela
editora Civilização Brasileira, os autores citam que pretendem
resgatar a importância da palavra no teatro feito no Brasil, mormente
em se tratando do drama. Que Gota D'Água atingiu plenamente tal
propósito, dúvidas não pairam, acredito eu. De modo tão
satisfatório que voou mais longe: pôs em evidência o fenômeno
"comunicação", e como ele ocorre entre as classes sociais
baixas. Assim é que a fofoca (sempre caracterizada por meias verdades,
rematadas mentiras ou exageros propositais), encarnada principalmente pelo personagem
não à toa batizado Boca Pequena, adquire relevância no desenvolvimento
do enredo, posto que introduz diversas situações dramáticas.
Nesse sentido, Gota D'Água, assim entendo, procurou realçar
a importância desse veículo de comunicação nas classes
baixas, por mais capenga que ele se mostre. Uma referência clara ao processo
comunicativo encontra-se na cena em que é travado um diálogo muito
tenso entre Egeu e Jasão, quando o segundo vai ao conjunto habitacional
com o propósito de impedir que o primeiro continue incitando a população
a suspender o pagamento das prestações devidas a Creonte, proprietário
das casas: o rádio que está sendo concertado ora fica na mão
de um, ora na mão de outro, exatamente com quem no momento é possuidor
de argumentos mais contundentes. O fato de Jasão conseguir fazer o rádio
funcionar, e tocando o seu samba, é um indicativo de que, ao término
da peça, seus motivos e ambições prevalecerão e
subirá na escala social por meio de Alma e Creonte, ainda que o preço
seja a infelicidade de Joana. Desnecessário é lembrar que ainda
hoje o rádio é um meio de comunicação de grande
credibilidade nas periferias e favelas brasileiras.
No mais, é aplaudir de pé. Como Eurípedes o faria, se vivo
fosse.