Leal ao próprio estilo, o dramaturgo Nelson Rodrigues almejou, Em
Anjo Negro, penetrar nas imensas e escuras cavernas existentes no interior
de cada indivíduo enquanto habitante da quilométrica senzala que
é a sociedade humana. Nesse sentido, não apenas a peça
teatral que ora passamos a analisar, mas também boa parte do conjunto
da obra rodrigueana, suplanta o incipiente território do que se convencionou
chamar "literatura brasileira" para universalizar-se justamente por
meio dalgumas bem tortas criaturas gestadas por essa sociedade: o racismo (não
exclusivamente contra negros), a repressão em amplos sentidos, a mentira
como um pré-requisito para que o indivíduo faça jus ao
direito de mover-se na tessitura social, os desequilíbrios emocionais
frutos das chibatadas psicológicas impostas por convenções
o mais das vezes ágrafas. E, curioso observar, quanto mais implícitas
e tácitas mais força de cláusulas pétreas elas adquirem.
Se o texto rodrigueano ainda não foi mundialmente aplaudido, à
semelhança doutros cânones, estamos diante duma injustiça
para com a língua portuguesa escrita no Brasil. Ainda que suas obras
sejam, palavras do autor, "pestilentas, fétidas, capazes, por si
sós, de produzir o tifo e a malária na platéia".
Um dos méritos de Anjo Negro reside em permitir várias
interpretações, até díspares entre si. Ao mesmo
tempo, é grande a probabilidade de o leitor/espectador não apreender
por completo os simbolismos pelos quais caminha o enredo. As muitas sugestões
que Nelson Rodrigues nos mostra às escâncaras ou as deixa subjacentes,
como pretendesse elas fermentem na imaginação de quem lê
ou assiste para, num futuro talvez, fazerem brotar algo frutífero, as
muitas sugestões demonstram não apenas o quanto certos aspectos
do que batizamos "realidade" possuem não poucas vezes substâncias
escorregadias como também a inconveniência de que nem sempre ela,
a realidade, manifesta-se consoante nossas sacrossantas crenças ideológicas
ou desejos íntimos. Depreende-se, pois, que motivos não faltaram
ao autor quando, ao definir a obra, classificou-a "Teatro Desagradável".
Temos, interpenetrados e por isso mesmo nem sempre visíveis à
primeira leitura, o Mito da Caverna; o Anjo Caído do cristianismo; um
recorte do Gênesis. E, seguramente, outros muitos simbolismos que nos
passaram ao largo. A seguir tentaremos demonstrar os símbolos citados,
se não forem miragens provocadas por pistas falsas, que também
habitam o texto.
A vigorosíssima metáfora do filósofo Platão, segundo
quem toda a humanidade estaria fadada a enxergar sombras e tomá-las por
concretude e não entendê-las como um aleijamento do real, nos sorri
na obra, cinismo indisfarçável. A mansão (uma casa grande
para um reles crioulo?! É muito atrevimento desse escritor pervertido...
diriam as mentes mais estreitas), a mansão erguida sem teto para que
a infinita escuridez absorva os (as) personagens e com muros sempre e sempre
mais altos para fugir ao mundo representa a caverna a partir da qual só
é possível ter uma imagem muito precária e idealizada do
que existe para além dela. O exemplo mais bem acabado dessa analogia
encontramos na personagem Ana Maria, que durante toda a sua curta existência
não sai da caverna (os muros inclusos), é cega e crê incondicionalmente
nas verdades fictícias criadas pelo suposto pai. Ismael, assim como Virgínia,
também é exemplo da miopia interpretativa que o isolamento provoca.
Ele obriga a esposa a viver, angustia e paranóia mútuas, na gruta
que construiu para servir como o seu universo particular, onde nem mesmo o lume
das estrelas existe.
Essa atitude de Ismael, erguer o seu próprio universo numa contraposição
àquele profundamente agressivo e injusto que lhe foi empurrado pela sociedade,
representa a figura bíblica de Lúcifer (o portador da luz), querubim
que teria sido expulso do Céu e caído em profunda escuridão
por ter provocado um levante contra a autoridade constituída (Deus).
Como Lúcifer, Ismael quer mostrar, em seu isolamento, que foi injustiçado
pelo poder vigente e anseia pro vingança. Sintomaticamente, o personagem
central não admite a presença duma gravura de Cristo em sua casa,
solicitada por Virgínia para que ela possa ver um outro rosto, ao invés
dos traços negróides do esposo. A recusa é veemente, alegando
que ninguém branco (cor a que a tradição e a ideologia
dominantes tomaram como símbolo de pureza e docilidade) entraria em sua
casa: "Ismael - Não deixo, nem quero... (espantado) Esse
Cristo, não; claro, de traços finos...".
Visitemos Gênesis, capítulo da Bíblia que narra o suposto
princípio do universo e do povoamento da Terra. Em seu capítulo
16, nos versículos 11 e 12, lê-se respectivamente o seguinte: "Disse-lhe
também o anjo do Senhor: eis que concebeste, e darás à
luz um filho, e chamarás o seu filho Ismael; porquanto o Senhor ouviu
a tua aflição"; "E ele será homem feroz, e a
sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele;
e habitará diante da face de todos os seus irmãos.". O Ismael
bíblico era filho duma escrava nascida no Egito, país habitado
por um povo de pele morena. Ora, sabemos que o personagem rodrigueano é
filho duma negra. Além disso, o Ismael de Anjo Negro, numa fala
de Virgínia, é tido como "(...) tão frio, tão
duro. Tem mãos de pedra. (...)", o que nos remete às palavras
iniciais do versículo 12. A continuidade dessa passagem bíblica
possui semelhança com o personagem da tragédia no que se refere
ao fato de que ele faz questão de mostrar à sociedade embranquecida
que o despreza velada e também explicitamente ("e a mão de
todos contra ele"), seu ódio sempre realimentado por essa sociedade.
O que lhe causa um prazer sádico. O mesmo ódio o torna disposto
a mostrar sua competência aos quatro cantos: gradua-se médico e
nessa profissão constrói seu bem sucedido caminho profissional
("e sua mão será contra todos") e até dar-se
ao luxo de prescindir exercer sua atividade.
Anjo Negro caracteriza-se, também, por ser uma constatação
cênica, através dos (as) personagens e atitudes, do quanto a sociedade
é sádica, masoquista, autodestrutiva, vingativa e cega. Se nos
atentarmos aos comportamentos, observaremos em Ismael, em Virgínia, na
tia e em Elias tais características mórbidas. Há, no casal
protagonista, uma delícia em produzir um mútuo sofrimento moral,
numa mescla de ódios explícitos e utilização do
corpo do (a) parceiro (a) como instrumento duma tortura que atinge também
o (a) torturador (a). Assim, o prazer do negro Ismael quando se relaciona sexualmente
com sua esposa branca está muito mais vivo no fato de saber que ela sente
repulsa por sua negritude; que os gritos dela na cama estão mais próximos
do horror ao estupro que deu motivou o casamento do que do orgasmo. Ao mesmo
tempo, Virgínia se permite possuir e fecundar por ele para, posteriormente,
destruir os frutos do casamento, os filhos negros. Ismael que sofra, e muito,
e tanto quanto possível. Numa falsa contradição, é
essa necessidade que ambos possuem de produzir sofrimento no outro e a si mesmos
que causa atração entre eles. Vejamos: "Ismael - Não
impedi porque teus crimes nos uniam ainda mais; e porque meu desejo é
maior depois que te sei assassina - três vezes assassina. Ouviste? (...)".
É uma cumplicidade mórbida que ultrapassa as mágoas e barreiras
raciais e que se legitima em dois gestos exemplares no fim do terceiro ato:
no aprisionamento da filha Ana Maria, branca, no mausoléu de vidro; na
relação sexual que se segue, oculta pelo coro de negras.
A cegueira (entendida aqui não apenas como ausência física
da faculdade de enxergar) e a vingança, na obra, caminham lado a lado.
Excetuando o coro, todos os personagens da tragédia são moralmente
cegos, em maior ou menor grau. Elias, por exemplo, o mensageiro da praga materna,
enxerga muito bem as conseqüências de possuir a esposa branca de
seu irmão negro, e não evidencia nenhum receio. Muito ao contrário.
Afinal, é uma vingança contra Ismael que, no passado, causara
sua cegueira. Porque se uma esposa branca é símbolo de vitória
parta o negro Ismael sobre a sociedade ariana que o menospreza, ainda que disfarçadamente,
Virgínia ser possuída por um homem branco significa atropelar
esse triunfo. Pior quando se sabe que o desejo, verdadeiro ou falso, ocorre
numa mão dupla, em que inexiste a violência sexual, fato marcante
para Virgínia. E atropelar o triunfo de Ismael significa a retomada,
por parte da sociedade, dum membro que estava refém de forças
contrárias aos seus valores intocáveis, sagrados. Mas eis que
surge um príncipe encantado, Elias, que salva a donzela das garras do
malvado vilão (ele é visto por Virgínia como alguém
a exalar pureza e castidade, ao contrário da suposta fetidez negra).
Quando Virgínia, personagem que exercita a mentira sistematicamente em
função de viver num universo falacioso e interminável,
admite o adultério por querer um filho branco (e assim vingar-se do marido
com quem teve apenas filhos negros, considerados réplicas malditas de
Ismael e uma praga a ser exterminada), a reação do marido, assassinar
o irmão, acreditamos apenas aparentemente pode ser considerada passional.
Tentando uma análise um pouco menos à flor da superfície
visível, nos parece um modo de apropriar-se do filho branco que Virgínia
terá, e a infidelidade o melhor pretexto que ele poderia ter conseguido
para eliminar definitivamente o odiado irmão branco. Tanto que o disparo
à queima-roupa atingiu Elias no rosto, insígnia da identidade
individual.
Não apenas na mentira é calcado o caráter da protagonista
feminina da tragédia. Também o sentimento homicida adquire valor
de "princípio ético", uma vez que em nenhum momento
demonstra remorso honesto por ter matado os três meninos negros, seus
filhos com Ismael. Muito natural lhe parecem os assassinatos, fosse ela alguém
a ceifar ervas daninhas num hipotético jardim. Além disso, induz
seu marido a enclausurar Ana Maria, com sua efetiva participação,
num jazigo de vidro, clara referência à Branca de Neve e seu esquife
transparente. E transparência é o que falta na relação
entre todos (as) personagens. Digno de nota observar que Virgínia confessa,
muito tranqüila (embora a princípio tente negá-las), todas
as acusações que lhe a tia lhe dirige, mesmo inexistindo provas
concretas. O mesmo desembaraço não se manifesta quando é
Ismael quem a incrimina. Perante o marido ocorrem, quase sempre, hesitações,
palavras que mal atingem o intento: encobrir a verdade. Talvez Virgínia
perceba que com a tia a dissimulação é inócua, perda
de tempo. As manhas e artimanhas da protagonista a mãe das virgens conheceria
melhor que o próprio marido?
Ainda mantendo o foco sobre essa personagem aparentemente secundária
meio ao emaranhado de sentimentos conflituosos e deletérios que fantasmagoram
a casa de Ismael e Virgínia, a tia adquire papel relevante quando sabemos
ter sido ela quem, no passado, fomentou a situação e o cenário
para que o estupro ocorresse, na cama de Virgínia solteira. Ainda mais,
se durante toda a obra esse leito permanece sempre tão caótico
e quebrado quanto no dia fatídico, o que temos à nossa frente
é a prova material de que a mesma violência que sacramentou com
o orgasmo do ódio o casamento ainda perdura entre o casal e no ambiente.
E que Virgínia não se sente ligada por laços afetivos a
um Ismael que, se odeia a sociedade racista, nutre o mesmo sentimento quanto
a si mesmo.
A grande repressão sexual vivida pelas filhas dessa personagem, sentimento
causador dos visíveis desvarios e do prazer pela maledicência,
emana dos cabrestos emocionais que a mãe carrega consigo e não
pretende ocultar. Todo esse núcleo dramático capitaneado pela
tia adora sentir o cheiro e o gosto do sangue alheio, testemunhar a desgraça.
E quando uma das filhas é estuprada (mais uma vez a tia de Virgínia
é mentora intelectual dum defloramento), a tragédia não
é assim encarada por quem a provocou. Antes, é um remédio
do qual a filha tanto precisava. O canhestro lamento da tia, quase cinismo disfarçado,
se dá por ter o estuprador assassinado a jovem desnecessariamente, num
ato de "precipitação".
Na caverna de Ismael o amor é presença indesejada. Ninguém
se ama. Quando a filha de Virgínia e seu falso pai declaram ou insinuam
à protagonista, em momentos diferentes, terem tido relações
sexuais entre si (uma espécie de "quase incesto", visto que
não há grau de parentesco), não é possível
aferir com absoluta solidez se estamos diante da verdade. Nem mesmo na fala
de Ana dirigindo-se à mãe: "Pai é o que a gente quer,
o que a gente escolhe, como um noivo...". Resta apenas a certeza de que,
se houve sexo entre os dois, o motivo foi, mais uma vez, a vingança.
Ismael e Ana contra Virgínia, mãe que odeia a adolescente por
não ser o menino necessário ao futuro incesto pretendido por ela
para vingar-se de Ismael, o negro.