A Garganta da Serpente
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O paraíso do Anjo Negro

(Eduardo Selga)

Leal ao próprio estilo, o dramaturgo Nelson Rodrigues almejou, Em Anjo Negro, penetrar nas imensas e escuras cavernas existentes no interior de cada indivíduo enquanto habitante da quilométrica senzala que é a sociedade humana. Nesse sentido, não apenas a peça teatral que ora passamos a analisar, mas também boa parte do conjunto da obra rodrigueana, suplanta o incipiente território do que se convencionou chamar "literatura brasileira" para universalizar-se justamente por meio dalgumas bem tortas criaturas gestadas por essa sociedade: o racismo (não exclusivamente contra negros), a repressão em amplos sentidos, a mentira como um pré-requisito para que o indivíduo faça jus ao direito de mover-se na tessitura social, os desequilíbrios emocionais frutos das chibatadas psicológicas impostas por convenções o mais das vezes ágrafas. E, curioso observar, quanto mais implícitas e tácitas mais força de cláusulas pétreas elas adquirem. Se o texto rodrigueano ainda não foi mundialmente aplaudido, à semelhança doutros cânones, estamos diante duma injustiça para com a língua portuguesa escrita no Brasil. Ainda que suas obras sejam, palavras do autor, "pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia".

Um dos méritos de Anjo Negro reside em permitir várias interpretações, até díspares entre si. Ao mesmo tempo, é grande a probabilidade de o leitor/espectador não apreender por completo os simbolismos pelos quais caminha o enredo. As muitas sugestões que Nelson Rodrigues nos mostra às escâncaras ou as deixa subjacentes, como pretendesse elas fermentem na imaginação de quem lê ou assiste para, num futuro talvez, fazerem brotar algo frutífero, as muitas sugestões demonstram não apenas o quanto certos aspectos do que batizamos "realidade" possuem não poucas vezes substâncias escorregadias como também a inconveniência de que nem sempre ela, a realidade, manifesta-se consoante nossas sacrossantas crenças ideológicas ou desejos íntimos. Depreende-se, pois, que motivos não faltaram ao autor quando, ao definir a obra, classificou-a "Teatro Desagradável".

Temos, interpenetrados e por isso mesmo nem sempre visíveis à primeira leitura, o Mito da Caverna; o Anjo Caído do cristianismo; um recorte do Gênesis. E, seguramente, outros muitos simbolismos que nos passaram ao largo. A seguir tentaremos demonstrar os símbolos citados, se não forem miragens provocadas por pistas falsas, que também habitam o texto.

A vigorosíssima metáfora do filósofo Platão, segundo quem toda a humanidade estaria fadada a enxergar sombras e tomá-las por concretude e não entendê-las como um aleijamento do real, nos sorri na obra, cinismo indisfarçável. A mansão (uma casa grande para um reles crioulo?! É muito atrevimento desse escritor pervertido... diriam as mentes mais estreitas), a mansão erguida sem teto para que a infinita escuridez absorva os (as) personagens e com muros sempre e sempre mais altos para fugir ao mundo representa a caverna a partir da qual só é possível ter uma imagem muito precária e idealizada do que existe para além dela. O exemplo mais bem acabado dessa analogia encontramos na personagem Ana Maria, que durante toda a sua curta existência não sai da caverna (os muros inclusos), é cega e crê incondicionalmente nas verdades fictícias criadas pelo suposto pai. Ismael, assim como Virgínia, também é exemplo da miopia interpretativa que o isolamento provoca. Ele obriga a esposa a viver, angustia e paranóia mútuas, na gruta que construiu para servir como o seu universo particular, onde nem mesmo o lume das estrelas existe.

Essa atitude de Ismael, erguer o seu próprio universo numa contraposição àquele profundamente agressivo e injusto que lhe foi empurrado pela sociedade, representa a figura bíblica de Lúcifer (o portador da luz), querubim que teria sido expulso do Céu e caído em profunda escuridão por ter provocado um levante contra a autoridade constituída (Deus). Como Lúcifer, Ismael quer mostrar, em seu isolamento, que foi injustiçado pelo poder vigente e anseia pro vingança. Sintomaticamente, o personagem central não admite a presença duma gravura de Cristo em sua casa, solicitada por Virgínia para que ela possa ver um outro rosto, ao invés dos traços negróides do esposo. A recusa é veemente, alegando que ninguém branco (cor a que a tradição e a ideologia dominantes tomaram como símbolo de pureza e docilidade) entraria em sua casa: "Ismael - Não deixo, nem quero... (espantado) Esse Cristo, não; claro, de traços finos...".

Visitemos Gênesis, capítulo da Bíblia que narra o suposto princípio do universo e do povoamento da Terra. Em seu capítulo 16, nos versículos 11 e 12, lê-se respectivamente o seguinte: "Disse-lhe também o anjo do Senhor: eis que concebeste, e darás à luz um filho, e chamarás o seu filho Ismael; porquanto o Senhor ouviu a tua aflição"; "E ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos.". O Ismael bíblico era filho duma escrava nascida no Egito, país habitado por um povo de pele morena. Ora, sabemos que o personagem rodrigueano é filho duma negra. Além disso, o Ismael de Anjo Negro, numa fala de Virgínia, é tido como "(...) tão frio, tão duro. Tem mãos de pedra. (...)", o que nos remete às palavras iniciais do versículo 12. A continuidade dessa passagem bíblica possui semelhança com o personagem da tragédia no que se refere ao fato de que ele faz questão de mostrar à sociedade embranquecida que o despreza velada e também explicitamente ("e a mão de todos contra ele"), seu ódio sempre realimentado por essa sociedade. O que lhe causa um prazer sádico. O mesmo ódio o torna disposto a mostrar sua competência aos quatro cantos: gradua-se médico e nessa profissão constrói seu bem sucedido caminho profissional ("e sua mão será contra todos") e até dar-se ao luxo de prescindir exercer sua atividade.

Anjo Negro caracteriza-se, também, por ser uma constatação cênica, através dos (as) personagens e atitudes, do quanto a sociedade é sádica, masoquista, autodestrutiva, vingativa e cega. Se nos atentarmos aos comportamentos, observaremos em Ismael, em Virgínia, na tia e em Elias tais características mórbidas. Há, no casal protagonista, uma delícia em produzir um mútuo sofrimento moral, numa mescla de ódios explícitos e utilização do corpo do (a) parceiro (a) como instrumento duma tortura que atinge também o (a) torturador (a). Assim, o prazer do negro Ismael quando se relaciona sexualmente com sua esposa branca está muito mais vivo no fato de saber que ela sente repulsa por sua negritude; que os gritos dela na cama estão mais próximos do horror ao estupro que deu motivou o casamento do que do orgasmo. Ao mesmo tempo, Virgínia se permite possuir e fecundar por ele para, posteriormente, destruir os frutos do casamento, os filhos negros. Ismael que sofra, e muito, e tanto quanto possível. Numa falsa contradição, é essa necessidade que ambos possuem de produzir sofrimento no outro e a si mesmos que causa atração entre eles. Vejamos: "Ismael - Não impedi porque teus crimes nos uniam ainda mais; e porque meu desejo é maior depois que te sei assassina - três vezes assassina. Ouviste? (...)". É uma cumplicidade mórbida que ultrapassa as mágoas e barreiras raciais e que se legitima em dois gestos exemplares no fim do terceiro ato: no aprisionamento da filha Ana Maria, branca, no mausoléu de vidro; na relação sexual que se segue, oculta pelo coro de negras.

A cegueira (entendida aqui não apenas como ausência física da faculdade de enxergar) e a vingança, na obra, caminham lado a lado. Excetuando o coro, todos os personagens da tragédia são moralmente cegos, em maior ou menor grau. Elias, por exemplo, o mensageiro da praga materna, enxerga muito bem as conseqüências de possuir a esposa branca de seu irmão negro, e não evidencia nenhum receio. Muito ao contrário. Afinal, é uma vingança contra Ismael que, no passado, causara sua cegueira. Porque se uma esposa branca é símbolo de vitória parta o negro Ismael sobre a sociedade ariana que o menospreza, ainda que disfarçadamente, Virgínia ser possuída por um homem branco significa atropelar esse triunfo. Pior quando se sabe que o desejo, verdadeiro ou falso, ocorre numa mão dupla, em que inexiste a violência sexual, fato marcante para Virgínia. E atropelar o triunfo de Ismael significa a retomada, por parte da sociedade, dum membro que estava refém de forças contrárias aos seus valores intocáveis, sagrados. Mas eis que surge um príncipe encantado, Elias, que salva a donzela das garras do malvado vilão (ele é visto por Virgínia como alguém a exalar pureza e castidade, ao contrário da suposta fetidez negra).

Quando Virgínia, personagem que exercita a mentira sistematicamente em função de viver num universo falacioso e interminável, admite o adultério por querer um filho branco (e assim vingar-se do marido com quem teve apenas filhos negros, considerados réplicas malditas de Ismael e uma praga a ser exterminada), a reação do marido, assassinar o irmão, acreditamos apenas aparentemente pode ser considerada passional. Tentando uma análise um pouco menos à flor da superfície visível, nos parece um modo de apropriar-se do filho branco que Virgínia terá, e a infidelidade o melhor pretexto que ele poderia ter conseguido para eliminar definitivamente o odiado irmão branco. Tanto que o disparo à queima-roupa atingiu Elias no rosto, insígnia da identidade individual.

Não apenas na mentira é calcado o caráter da protagonista feminina da tragédia. Também o sentimento homicida adquire valor de "princípio ético", uma vez que em nenhum momento demonstra remorso honesto por ter matado os três meninos negros, seus filhos com Ismael. Muito natural lhe parecem os assassinatos, fosse ela alguém a ceifar ervas daninhas num hipotético jardim. Além disso, induz seu marido a enclausurar Ana Maria, com sua efetiva participação, num jazigo de vidro, clara referência à Branca de Neve e seu esquife transparente. E transparência é o que falta na relação entre todos (as) personagens. Digno de nota observar que Virgínia confessa, muito tranqüila (embora a princípio tente negá-las), todas as acusações que lhe a tia lhe dirige, mesmo inexistindo provas concretas. O mesmo desembaraço não se manifesta quando é Ismael quem a incrimina. Perante o marido ocorrem, quase sempre, hesitações, palavras que mal atingem o intento: encobrir a verdade. Talvez Virgínia perceba que com a tia a dissimulação é inócua, perda de tempo. As manhas e artimanhas da protagonista a mãe das virgens conheceria melhor que o próprio marido?

Ainda mantendo o foco sobre essa personagem aparentemente secundária meio ao emaranhado de sentimentos conflituosos e deletérios que fantasmagoram a casa de Ismael e Virgínia, a tia adquire papel relevante quando sabemos ter sido ela quem, no passado, fomentou a situação e o cenário para que o estupro ocorresse, na cama de Virgínia solteira. Ainda mais, se durante toda a obra esse leito permanece sempre tão caótico e quebrado quanto no dia fatídico, o que temos à nossa frente é a prova material de que a mesma violência que sacramentou com o orgasmo do ódio o casamento ainda perdura entre o casal e no ambiente. E que Virgínia não se sente ligada por laços afetivos a um Ismael que, se odeia a sociedade racista, nutre o mesmo sentimento quanto a si mesmo.

A grande repressão sexual vivida pelas filhas dessa personagem, sentimento causador dos visíveis desvarios e do prazer pela maledicência, emana dos cabrestos emocionais que a mãe carrega consigo e não pretende ocultar. Todo esse núcleo dramático capitaneado pela tia adora sentir o cheiro e o gosto do sangue alheio, testemunhar a desgraça. E quando uma das filhas é estuprada (mais uma vez a tia de Virgínia é mentora intelectual dum defloramento), a tragédia não é assim encarada por quem a provocou. Antes, é um remédio do qual a filha tanto precisava. O canhestro lamento da tia, quase cinismo disfarçado, se dá por ter o estuprador assassinado a jovem desnecessariamente, num ato de "precipitação".

Na caverna de Ismael o amor é presença indesejada. Ninguém se ama. Quando a filha de Virgínia e seu falso pai declaram ou insinuam à protagonista, em momentos diferentes, terem tido relações sexuais entre si (uma espécie de "quase incesto", visto que não há grau de parentesco), não é possível aferir com absoluta solidez se estamos diante da verdade. Nem mesmo na fala de Ana dirigindo-se à mãe: "Pai é o que a gente quer, o que a gente escolhe, como um noivo...". Resta apenas a certeza de que, se houve sexo entre os dois, o motivo foi, mais uma vez, a vingança. Ismael e Ana contra Virgínia, mãe que odeia a adolescente por não ser o menino necessário ao futuro incesto pretendido por ela para vingar-se de Ismael, o negro.

  • Publicado em: 18/01/2008
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