A Garganta da Serpente
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Literatura de jornal

(Artur da Távola)

A crônica é a expressão das contradições da vida e da pessoa do escritor ou jornalista, exposto que fica, com suas vísceras existenciais à mostra no açougue da vida, penduradas à espera do consumo de outros como ele, enrustidos, talvez, na manifestação dos sentimentos, idéias, verdades e pensamentos. Já escrevi mais de cinco mil crônicas. E a uns estudantes que me pediram uma síntese sobre o gênero, respondi o seguinte:

É o samba da literatura. É, ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o registro histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o miniconto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o humor. Tudo isso ela contém, a polivalente. Direta e simples como um samba. Profunda como a sinfonia.

É compacta, rápida, direta, aguda, penetrante, instantânea (dissolve-se com o uso diário), biodegradável sumindo sem poluir, sem degradar ou denegrir, oxalá deixando perfume, saudade e algum brilho de vida no sorriso ou na lágrima do leitor.

A literatura do jornal. O jornalismo da literatura.

É a pausa de subjetividade, ao lado da objetividade da informação do restante do jornal. Um instante de reflexão, diante da opinião peremptória do editorial.

É tímida e perseverante. Não se engalana com os grandes edifícios da literatura; mas pode conter alguns de seus melhores momentos. Não se enfeita com os altos sistemas de pensamento; mas pode conter a filosofia do quotidiano e da vida que passa. Não se empavona com a erudição dos tratados; mas pode trazer a agudeza de percepção dos bons ensaios.

Para ser boa não deve ser mastigada. Deve dissolver-se na boca do leitor deixando um sabor de vivência comum. Deve parecer que já estava escrita há muito tempo na sensibilidade de quem a lê e foi apenas lembrada ou ativada pelo escritor/jornalista que lhe deu forma.

Deve ser rápida como a percepção e demorada como a recordação. Verdadeira como um poente e esperançosa como a aurora. Irreverente como um carioca. Suave como pele de mulher amada e irritada como uma criança com fome. Terna como a amamentação e insegura como toda primeira vez. Religiosa como a portadora do mistério e agnóstica como um livre pensador.

A crônica nos obriga à síntese, à concisão, à capacidade de condensar emoções em parágrafos-barragem. Faz-nos prosseguir, mesmo quando nos sentimos repetitivos. É, pois, a expressão jornalístico-literária da necessidade de não desistir de ser e sentir. A crônica é o samba da literatura.

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