A Garganta da Serpente
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Viver da palavra

(Artur da Távola)

A palavra é a melhor e mais imprecisa forma de representar o real. Nada é tão único, direto e simples quanto à palavra e nada tão difícil. O homem vive a dificuldade de aprisionar a palavra, para, só assim, descobrir o termo preciso. Essa luta só acaba quando, no esforço de aprisionar a palavra, ela o aprisiona. Esse jogo (luta?tarefa?alegria?), o de aprisionar a palavra e ser aprisionado fascina de tal modo que quem o empreende faz-se aprisionado. Este é o jogo do escritor; este é o jogo do poeta. Aprisionar a palavra que escapa, dela desejando ser vítima, amante senhor e escravo.

Poetas e políticos possuem essa afinidade: a de trabalhar palavra, a de viver da palavra, a de viver da palavra e se sentindo de cimento ou de pântano. Eles se tornam cúmplices da palavra no processo através do qual ela impera sobre eles, ao mesmo tempo em que precisa ser vencida por ambos. Pois é desse esforço bendito e maldito (porque sempre incompleto e insatisfatório) que nasce o poeta.

A poesia, não para - contudo - na palavra. Ela é também - e sobretudo - a busca do sentido das coisas. E o que é o sentido das coisas? Este, aparece rapidamente em nossa mente e logo foge, escapa, nem sempre se torna claro para o homem. Este, porém, prefere chamar esse clarão fugido de verdade. Por isso é necessário haver uma Casa onde "as verdades" se contradigam...

Eu perguntaria a vocês: é fácil saber o que é a vida? A morte? É claro saber o que é a liberdade? O que é a política? Não! Nós temos impressões, percepções, e há sempre algo a fugir no sentido das coisas. Aí está o poeta. O poeta é esse ser à margem dos homens, um tanto subversivo em relação aos comportamentos dos homens, que busca pilhar a lucidez fugida. Enquanto os homens vivem atados às suas paixões, o poeta (que também tem as dele), guarda dentro de si um outro lado em permanente vigilância, em alerta de sensibilidade. Ele não tenta entender o sentido das coisas apenas; ele tenta - se me permitem a palavra - sentir o sentido das coisas. E nesse momento o sentido das coisas não é apenas algo fluido em sua inteligência mas uma vivência ou intuição presente sobretudo no órgão do sentimento.

Muitos de vocês sabem que um dos sinônimos da palavra poeta é vate. Essa palavra não é usada atualmente. Quem é o vate? O vate é o que vaticina. E vaticinar - é adivinhar, é antever, é ver adiante.

Poeta também quer dizer profeta, o que vê além.

E do que trata o poeta? Trata do verso.

O poeta vê o verso, vê o outro lado. Por isso, ele é perigoso. Por isso, ele é grandioso. Por isso, ele ameaça. A história dos homens conta inúmeros casos de poeta assassinados, degredados, exilados, perseguidos, porque eles dominam esse mistério, essa deusa: a palavra. Dominam, não nos esqueçamos, porque são dominados por ela. E ao dominá-la e serem, por ela dominados, conseguem ver mais e melhor, ver além, por dentro e no verso.

Assim, mataram poetas nas revoluções, baniram poetas nas crises políticas. O poeta é perigoso, porque está sozinho, longe dos apetites do mundo, a trabalhar com a sensibilidade, tarefa subversiva porque oposta ao mundo de hoje, o da predominância do consumo, da máquina, do fazer, no qual a única ética é o êxito. No mundo das promoções, dos passos artificiais, da ditadura infernal da economia sobre os homens (materializando as relações entre eles), nesse mundo, o poeta é o mais perigoso dos seres. Ele não se entrega às "verdades" das aparências; ele prefere ficar com o verso. Prefere ficar, como dizia Cruz e Souza: "que entre raios, pedradas e metralhas, ficou gemendo mas ficou sonhando".

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