A Garganta da Serpente
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O sebo é a esperança

(Artur da Távola)

A propósito de meu livro mais recente, "A Mulher é Amar", um jovem me faz um interrogatório com pedido de conselhos etc. Seja por que nessa matéria eu só tenho um conselho - ler muito e escrever todos os dias, pelo menos 20 minutos, e como não me considero apto a dar conselhos em literatura, matéria da qual me sinto, sinceramente, aprendiz, esbocei as idéias abaixo. Oxalá o ajudem.

A sina do escritor, não é a de ser conhecido, famoso nem best seller, mas a de encontrar, aos poucos, almas irmãs (podem também ser primas) capazes de sintonia. Não é necessário sucesso. Este é mera manifestação epidérmica da contemporaneidade. É necessário, sim, ir fundo em si mesmo, encontrando meios e modos de grafar as verdades e observações próprias. Nesse caso é maior a hipótese de sua obra durar.

Jamais frear o impulso criador, pouco importa o seu destino. O escritor precisa lutar, com as forças que tiver, para ludibriar os sistemas e as exigências da sobrevivência, da convivência, e encontrar tempo - ainda que escasso e roubado até de felicidades - para o exercício de seu trabalho, não importa se horas ou minutos, em que tipo de papel, máquina ou computador...

É imperdoável em quem dotado do dom de ser escritor deixar escapar vivências, idéias, temas, escritos, sem fixar a percepção luminosa, quando ocorre. As inspirações raramente retornam da mesma maneira. Muitas vezes desaparecem para sempre no fluxo incessante e maravilhoso da mente. Cada percepção luminosa pertence a um envolvimento peculiar e a momentos sensíveis que não se repetem. Podem, até, retornar sob outras formas, adiante. Podem, ademais, constituir obsessões do repertório de vivências internas de cada um. Porém nunca retornam da mesma maneira. Para um escritor, é imperdoável desperdício deixá-las passar.

Ao lado da inspiração, há, porém, a necessidade de tempo para o trabalho braçal de desenvolver as idéias e aprimorar o texto. Aqui, é necessário labuta e persistência. Não importa, igualmente, se o escritor nato tem ou não condições para fazê-lo dentro do tempo e do ritmo impostos pelos sistemas. É fazer: custe o que custar. Mesmo que a obra demore muitos anos e seja esculpida com a lentidão necessária a dar forma à pedra ou bronze, o dever maior é o de realizá-la. Escrever é, também, forma de meditar, não apenas no sentido de exercitar o pensamento, mas no de fazer o que os orientais chamam de meditação, vale dizer, a interrupção do fluxo das ansiedades inerentes a cada vida e à vida, para, após liberar a mente e dar entrada no próprio imo, interromper os motivos de sofrimento e doença. Quem deseja escrever não deve pensar no sucesso e sim nas almas com as quais se identificará, muitas ou poucas, não importa. Escrever não é saber: é tomar consciência do que se está a aprender na vida. Por falar em vida, a verdadeira vida dos livros começa nos sebos.

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