O primeiro texto que, aos 16 anos, publiquei num jornal, creio que irrompeu
de duas fontes: primeiro, do fascínio por um livro que acabara de ler
" A arte de escrever"-de Antônio Alballat; segundo, de indignação
diante de coisas que constatava. Daí o título daquele artigo ou
crônica: "- Que horas são? -São horas de ser honesto".
Isto era uma indagação de um personagem de Shakespeare.
É possível que a imagem de meu pai sempre com um livro na mão,
a sonoridade dos versículos bíblicos que desde cedo ouvia na Igreja
Metodista do bairro de São Mateus( Juiz de Fora) e os grêmios literários
d " O Granbery" tenham me estimulado. É possível também
que minhas primeiras escrivinhações tenham decorrido também
das pulsões eróticas da adolescência. Aquela energia toda
reprimida deve ter se condensado no imaginário. Nessa fase comecei a
descobrir que a escrita e a leitura eram uma maneira de viajar pelo passado
e pelo futuro e um modo de expandir o presente. Eram também uma forma
de aprendizagem da vida. Uma forma de tentar apreender o mundo ao redor, desde
a rua de subúrbio até as paisagens inalcançáveis.
Escrever, então, era uma maneira de sentir e ressentir o mundo e a
vida . Um diário secreto.Deve ser por isto que comecei a preencher um
caderno de poemas de trás para frente, como que tentando iludir a quem
o abrisse.
Acho que escrever é mesmo um modo de olhar as coisas pelo seu avesso,
de ver o mundo nas suas costuras, no seu negativo, tentando revelar o irrevelável.
Fui aprendendo, então, que escrevia para aprender. Que escrevendo ia
desvelando meus sentimentos primeiro para mim mesmo, depois para outros. E se
houvesse uma coincidência de interesses a minha escrita poderia se converter
em algo, digamos, de "utilidade pública".
O escritor, se me permitem, é isto: é um indivíduo de
utilidade pública. Ele se põe a sonhar ou a ter pesadelos em praça
pública. Por isto, alguns escritores parecem meio sonâmbulos. Na
verdade, pisam mundos vários e alguns até caem nos desvãos
entre um mundo e outro e nunca mais retornam.
Mas se insistirem em me perguntar de novo:-O que significa escrever hoje?
eu vou responder assim: -Significa a mesma coisa que significava há uns
4 mil anos, quando na Mesopotâmia, numa cidadezinha chamada Ebla, reuniam-se
l8 mil escribas para organizar a vida econômica, social e o imaginário
dos seus 250 mil habitantes. As ruínas dessa cidade foram redescobertas
recentemente . Ali foram encontrados dezenas de dicionários e milhares
de livros em tabuinhas de barro, e dizem que as leis básicas da biblioteconomia
já eram ali também praticadas. A escrita, portanto, é uma
forma mais nítida de organização da alma de um indivíduo
e de um povo. Por isto, quando Jeová quis organizar o caos em que andava
o povo de Israel, baixou os Dez Mandamentos. E foi em situações
mágicas e míticas semelhantes que sugiram as epopéias e
textos religiosos dos povos. De repente, uma divindade desencadeia num poeta
o texto revelador e ele fala por si e pela sua comunidade.
Esta, aliás, é a metáfora que está por trás
de meu livro "A Grande fala do índio guarani". Metáfora,
esclareça-se, que nem é minha, senão dos próprios
índios guaranis, pois o Xamã (ou sacerdote da tribo) retirava-se
de madrugada para a mata e, entrando em contato com seus antepassados, deixava-se
possuir por um língua misteriosa("o grande falar"), que só
os eleitos conheciam e no qual contava-se toda a história e angústia
de seu povo.
Hoje tenho mais de trinta livros publicados, o que não significa nada,
porque Sócrates e Cristo nunca escreveram livro e,no entanto,e mudaram
o mundo, enquanto eu, como o disse num poema, "só mudei de tinta
e de endereço". Cada um desses meus livros, contudo, teve um significado
particular. Cada um é mais do que uma pedra ou peça numa construção
ou engrenagem. Diria que cada um é uma forma de indagar e responder.
Aliás, um desses livros tinha um título indagativo: "Que
país é este?". A pergunta sendo minha, não era minha.
Colhia-a da imprensa da época, da boca de um político mineiro.
Mas transformou-se numa questão intemporal. Quanto à resposta,
passados l6 anos da publicação do livro, ela continua problemática
e deprimente.
Há escritores que quando indagados sobre o que significa escrever ou
por que escrevem, respondem ressaltando apenas seu compromisso estético
com a linguagem. Falam sobre as formas, sobre a elaboração do
texto como se a escrita literária fosse alguma coisa alienada do cotidiano
e da história, como se fosse um obelisco verbal.
Em minha atividade de escritor tenho tido a oportunidade de praticar diversos
tipos de escrita. Escrevo para jornais, escrevo livros de ensaios, escrevo poemas,
escrevo textos para rádio e televisão, textos para agências
de publicidade, etc.
Portanto, uma escrita que se irradia em várias direções,
conforme as necessidades ou solicitações. Posso passar seis anos
elaborando um poema ("A Catedral de Colônia) ou posso produzir um
texto para daqui a meia hora no "Jornal Nacional". Neste sentido escrever
é uma atividade de risco. E sempre foi assim,com autores bons e autores
ruins.
Alguém deve estar pensando enquanto lê esse texto:--Mas em que
parágrafo que ele vai falar sobre a escrita e a sociedade informacional
em que vivemos?- Não está a escrita condenada a acabar nesse mundo
audiovisual?
-Não. Ao contrário, cada vez se escreve mais e se lê mais.Para
manejar um computador há que ler seguidamente instruções
e saber lidar com o comando das palavras. E , afinal, escrever não é
também saber comandar as palavras?
Diria mesmo que essa é a diferença básica entre o escritor
e não escritor. O escritor dirige, administra,torna produtivo o seu discurso.
Ele não fica a mercê das palavras. Por isto, uma das primeiras
lições para quem quer começar a aprender a escrever é
lidar com as armadilhas dos "lugares comuns". Esses"lugares comuns",
tipo " vinha caindo a tarde","seus olhos marejaram de lágrimas","sentiu
um aperto no coração","com o coração despedaçado
de sofrimento", e milhões de outros que povoam nossa linguagem diária,
são comandos lingüísticos que nos comandam. O escritor deve
evitá-los para assumir a sua própria linguagem.Escritor é
essencialmente o indivíduo que criou um modo de se expressar dentro da
linguagem geral. Por outro lado, existe uma diferença entre escritor
e redator. Pode alguém ser ótimo redator sem ser escritor. E vice-versa.
A diferença entre redator e escritor é o inexplicável "pulo
do gato", uma coisa chamada talento que, existindo, pode ser aprimorado.
Além da poesia, escrevo ensaios. E isto, ao lado de ter sido professor
durante 30 anos, deu-me oportunidade de olhar o fenômeno da criação
por outros ângulos. Tornou mais ampla e aguda minha visão do processo
criativo . E como talvez o leitor saiba ,desde que em l984 fui chamado a substituir
Drummond no "Jornal do Brasil" (hoje estou n' "O Globo"
e no "Estado de Minas") passei a viver mais intensamente algumas emoções
bem distintas dentro da prática da escrita. O cronista tem uma relação
com o público diversa da relação dos demais escritores.
Ele escreve,em princípio, para o dia seguinte. E seu texto não
é apenas o texto jornalístico, mas um texto que surgindo no jornal
tem características literárias. Isto é que vai lhe dar
certa autonomia e durabilidade . No entanto, o escritor é, num sentido
amplo, sempre um cronista. Homero, sem fazer crônicas, fez a crônica
de seu tempo. O mesmo com Shakespeare. Por isto, finalizando, poderia dizer
que sou um escritor "crônico". Em vários sentidos. Tanto
porque escrevo crônicas, quanto pelo fato de que meus textos estão
impregnados do meu tempo (cronos) e da minha estória/história.
Escrever então é isto: uma forma de habitar o tempo.
(09/06/99)
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