Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não.
Depende de quem lê.
Penso nisto nesta semana em que a cidade experimenta uma vez mais, e melhorado,
o "Paixão de Ler", que Vânia Bonelli e Vera Mangas administram.
Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não.
Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente.
Ainda agora os jornais estão repetindo, a propósito das recentes
eleições, "que é preciso entender o recado das urnas".
Ou seja: as urnas falam, emitem mensagens. O sambista dizia que "as rosas
não falam, as rosas apenas exalam o perfume que roubam de ti". Perfumes
falam. E as urnas exalaram um cheiro estranho. O presidente diz que seu partido
precisa tomar banho de "cheiro de povo". E enquanto repousava nesses
feriados e tomava banho em nossas águas, ele tirou várias fotos
com cheiro de povo.
Paixão de ler. Ler a paixão.
Como ler a paixão se a paixão é quem nos lê? Sim,
a paixão é quando nossos inconscientes pergaminhos sofrem um desletrado
terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia .
O corpo é um texto. Há que saber interpretá-lo. Alguns
corpos, no entanto, vêm em forma de hieróglifos, dificílimos.
Ou, a incompetência é nossa, iletrados diante dele?
Quantas são as letras do alfabeto do corpo amado? Como soletrá-lo?
Como sabê-lo na ponta da língua? Tem 24 letras? Quantas letras
estranhas, estrangeiras nesse corpo? Como achar o ponto G na cartilha de um
corpo? Quantas novas letras podem ser incorporadas nesta interminável
e amorosa alfabetização? Movido pelo amor, pela paixão
pode o corpo falar idiomas que antes desconhecia.
O médico até que se parece com o amante. Ele também lê
o corpo. Vem daí a semiologia. Ciência da leitura dos sinais. Dos
sintomas. Daí partiu Freud, para ler o interior, o invisível texto
estampado no inconsciente. Então, os lacanianos todos se deliciaram jogando
com as letras - a letra do corpo, o corpo da letra.
Portanto, não é só quem lê um livro, que lê.
Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada. Fazer um jardim
é reler o mundo, reordenar o texto natural. A paisagem pode ter sotaque.
Por isto se fala de um jardim italiano, de um jardim francês, de um jardim
inglês. E quando os jardineiros barrocos instalavam assombrosas grutas
e jorros d'água entre seus canteiros estavam saudando as elipses do mistério
nos extremos que são a pedra e a água, o movimento e a eternidade.
O urbanista e o arquiteto igualmente escrevem, melhor dito, inscrevem, um texto
na prancheta da realidade. Traçados de avenidas podem ser absolutistas,
militaristas, e o risco das ruas pode ser democrático dando expressividade
às comunidades.
Tudo é texto. Tudo é narração.
Um desfile de carnaval, por exemplo. Por isto se fala de "samba enredo".
Enredo além da história pátria referida. A disposição
das alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas
narrativas.
Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber ler uma partida
- este o mérito do locutor esportivo, na verdade, um leitor esportivo.
Ele, como o técnico, vê coisas no texto em jogo, que só
depois de lidas por ele, por nós são percebidas. Ler, então,
é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e
o leitor.
Paulinho da Viola dizia: "As coisas estão no mundo eu é
que preciso aprender". Um arqueólogo lê nas ruínas
a história antiga. O astrônomo lê a epopéia das estrelas.
Ora, direis, ouvir & ler estrelas. Que estórias sublimes, suculentas,
na Via Láctea.
Não é só Scheherazade que conta estórias. Um espetáculo
de dança é narração. Uma exposição
de artes plásticas é narração. Tudo é narração.
Até o quadro "Branco sobre o branco" de Malevich conta uma
estória.
Aparentemente ler jornal é coisa simples. Não é. A forma
como o jornal é feita, a diagramação, a escolha dos títulos,
das fotos e ilustrações são já um discurso. E sobre
isto se poderia aplicar o que Umberto Eco disse sobre o "Finnegans Wake"
de James Joyce: "o primeiro discurso que uma obra faz o faz através
da forma como é feita".
Estamos com vários problemas de leitura hoje. Construímos sofisticadíssimos
aparelhos que sabem ler. Eles nos lêem. Nos lêem melhor que nós
mesmos. E mais: nós é que não os sabemos ler. Isto se dá
não apenas com os objetos eletrônicos em casa ou com os aparelhos
capazes de dizer há quantos milhões de anos viveu certa bactéria.
Situação paradoxal: não sabemos ler os aparelhos que nos
lêem. Analfabetismo tecnológico.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto também lê
o mundo. Às vezes, sabiamente. Em nossa arrogância o desclassificamos.
Mas Levi-Strauss ousou dizer que algumas sociedades iletradas eram ética
e esteticamente muito sofisticadas. E penso que analfabeto é apenas aquele
que a sociedade letrada refugou. De resto, hoje na sociedade eletrônica,
quem não é de algum modo analfabeto?
Vi na fazenda de um amigo aparelhos eletrônicos, que ao tirarem leite
da vaca, são capazes de ler tudo sobre a qualidade do leite, da vaca,
e até o pensamento de quem está assistindo a cena. Aparelhos sofisticadíssimos
lêem o mundo e nos dão recados. A camada de ozônio está
berrando um S.O.S , mas os chefes de governo, acovardados, tapam (economicamente)
o ouvido. A natureza está dizendo que a água além de infecta,
está acabando. Lemos a notícia e postergamos a tragédia
para nossos netos.
É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa com a interpretação.
Feiticeiros e profetas liam mensagens nas vísceras dos animais sacrificados
e paredes dos palácios. Cartomantes lêem no baralho, copo d'água,
búzios. Tudo é leitura. Tudo é decifração.
Ler é uma forma de escrever com mão alheia.
Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Mas bem escrevê-lo
são artes da narração. Mas só escreve bem, quem
ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.
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LEITURA DO CRIME: disse o general Cardoso: "Crime está mais organizado
que nós". A frase é verdadeira, mas com o enfoque invertido.
A desorganização social e econômica é que organiza
o crime.
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