Às vezes, leitores escrevem a mim e a outros escritores, perguntando
se podem enviar (ou já enviando) seus textos. Em geral, repetem algumas
coisas, que retratam o desconforto dessa situação. Primeiro, que
carecem da opinião de alguém mais experimentado, que lhes oriente
e, em muitos casos, querem saber se devem ou não continuar a escrever.
Nem sempre são jovens, mas pessoas maduras em quem, de repente, a literatura
(ou a liberdade de expressão?) aflorou. Faço o possível
para responder. Às vezes sugiro a leitura de vários livros, muitos
citados em "A sedução da palavra" (Ed. Letraviva), que
tem o propósito expresso de orientar iniciantes e repassar experiências
literárias. O ideal é que houvesse uma "clínica de
textos", que acolhesse essa demanda profissionalmente, porque nenhum escritor
tem disponibilidade para esse árduo e delicadíssimo trabalho.
Seria um trabalho de consultoria, como qualquer outro, com hora marcada, tabela
de preço, para dar logo mais seriedade à atividade.
Alguns pedem logo uma orelha ou prefácio, caso o livro seja do agrado.
Isto também é complicado. O solicitante tem a ilusão que
uma apresentação vai lhe abrir as portas. Não vai. Só
vai se o livro for bom mesmo. Neste caso nem precisa de orelha ou prefácio
para se impor. Claro, há autores que elogiam todo e qualquer livro, por
generosidade ou por não quererem magoar as pessoas.
Quando o autor pergunta se deve continuar ou não a escrever, digo que
esta é uma questão que ele, e não outros, deve responder.
Dá vontade de lembrar aquele conselho de Rilke ao jovem poeta, que se
escrever não for uma necessidade vital, então é mesmo melhor
parar e ir cantar noutra freguesia.
Às vezes, os que pedem tal opinião estão num estágio
pré-literário.Escrevem só de ouvido.Repetem lugares comuns.
Não sabem nem o que é lugar comum ou como lidar com ele. Não
estão a par da história literária, dos movimentos que se
sucederam, dos diferentes estilos e técnicas. Não são nem
sequer leitores, bons leitores, aqueles que convivem e assimilam os grandes
e pequenos autores. Pensam que escrevem, mas estão sendo escritos por
uma linguagem que já existe. Desconhecem que o escritor é aquele
que ocupa um lugar na linguagem. O texto está entre o prosaico de certas
letras banais de música e simples (ainda que legítimas) anotações
emocionais. Nesses casos não há muito ou nada que fazer. (O mesmo
se dá com quem resolve pintar, fazer teatro, música ou o que seja
de artístico, movido por impulsos superficiais e descomprometidos).
Mas o caso mais difícil é daqueles que têm realmente talento
e já se expressam de uma maneira mais madura e pessoal. Não vamos
encontrar em seus trabalhos falhas primárias. Já têm leitura.
Conhecem alguns clássicos de ontem e de hoje. Não são incautos.
Estão numa situação que é grave e delicada, estão
na borda de alguma coisa que pode, ou não, acontecer. Ou seja, podem
ou não virar socialmente artistas.
E é aqui que a porca torce o rabo.
Tirando de lado as pessoas que realmente não têm talento, há
outras que são capazes de produzir uma pintura ou escultura correta,
até com certa inventividade. Pessoas que são capazes de produzir
um ou mais contos interessantes, mesmo um romance. Pessoas que podem produzir
uma ou outra música que nos diz alguma coisa. E assim por diante, uma
peça de teatro ou, cinematograficamente, um curta ou longa. Pessoas,
enfim, que podem produzir alguns bons poemas.
Até diria que uma coisa é estar artista e outra é ser
artista. Pode uma pessoa numa determinada circunstância ou período
de sua vida, eventualmente, estar em condições tais que suas emoções
se precipitem em determinadas formas de expressão. É como se tivesse
se conectado com forças e energias que a ultrapassam e a resgatam.
Mas uma coisa é a capacidade de fazer algo razoavelmente bem feito num
determinado instante. Outra é comprometer-se com um projeto onde vida-e-obra
se confundem. É como se tivéssemos achado umas pepitas de ouro
na superfície de um terreno. Mas a riqueza está no fundo e exige
paciência, técnica e aprofundamento. E é aqui que muitos
embatucam, porque achavam que bastava balançar a árvore dourada
e os frutos cairiam aos seus pés de Midas.
Ao contrário, daqui para frente é que o desafio vai começar.
Agora é que há que atravessar o deserto por quarenta anos e cultivá-lo
"como um pomar às avessas". É como se alguém
tivesse as ferramentas, alguns tijolos e pedras: resta uma construção
por fazer. Cadê o projeto? E a construção é aquilo
que se constrói enquanto se constrói. Sendo a obra de arte, segundo
Joyce, uma obra-em-progresso, como diria o nosso Rosa, é travessia.
Por isto, as pessoas que têm alguns dos atributos necessários para
se tornarem artistas, num determinado instante encontram-se naquela situação
que a antropologia chama de situações limites. Há um ritual
a cumprir para se passar de um estágio a outro. Ultrapassar essa linha
divisória entre o amadorismo e o profissionalismo, entre o episódico
e o sistemático, entre o aleatório e um projeto estético-existencial,
eis o desafio. E nisto, de novo, há uma pesada solidão. Solidão
difícil de ser compartilhada. Tenho dito a algumas dessas pessoas que
surpreendi na soleira desse rito de iniciação: agora depende de
você. De você e de uma série de fatores aleatórios.
Pois assim como o criador tem que cavar no escuro de si mesmo a sua pretensa
riqueza, entrar no sistema literário e artístico é entrar
numa selva escura. Talentos podem se perder, ou terem seu percurso mutilado,
enquanto outros são espantosamente superestimados.
O artista autêntico, no entanto, tem a coragem e a audácia de
abrir e povoar uma clareira ou receber esse raio na cara, não apenas
eventualmente, mas a todo instante. Mas isto é altamente perigoso. Diante
dessa situação, alguns entram em pânico e se demitem. Abrir-se
à arte é dar um salto mortal no escuro, para que todos vejam.
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