Chamam-me para uma conferência sobre João Cabral
de Melo Neto, em Buenos Aires. Irrecusável. O poeta morreu há pouco. E sobre ele
se repetiram os elogios e os lugares comuns sobre sua obra. Procuro outro veio.
Volto às anotações feitas para meus primeiros alunos (meu Deus!) há quase 40 anos.
Revejo um ensaio que escrevi na década de 80 para um livro nos Estados Unidos
e a crítica que fiz ao Museu de Tudo, na Veja, nos anos 70.
Levo, então, para a audiência do Centro de Estudos Brasileiros - hoje dirigido
pela competente Mônica Hirsh, um desafio, uma provocação: João Cabral poeta conceitista
barroco.
- Como chamar de barroco a um poeta moderno?
Como designar assim alguém que se diz aparentado com Miró, Marianne Moore, Max
Bense, Mondrian e, identificando-se com a escola de desenho industrial
de Ulm, faz uma poesia contra os humores pegajosos / de uma arte obesa, carnal,
gorda ?
Lhes digo: Cabral é barroco, como Guimarães Rosa
é barroco, como Saramago é barroco, como Alejo Carpentier é barroco, como Niemeyer
é barroco, como Villa-Lobos é barroco. É barroco, porque por Barroco estou me
referindo a algo que transcende os séculos XVII e XVIII. Barroco como uma estratégia,
mais que um estilo de época.
Então, vejamos. Engana-se quem pensa que o Barroco
é apenas sinônimo de arte nebulosa, hermética, hiperbólica, exageradamente
elíptica e derramada. Isto, sem dúvida, existe em Góngora, Bach e Borromini. Mas,
atrás dessa vulcânica expressão formal, há uma estrutura rigorosa, matemática
e racional. Portanto, reformemos nosso conceito de Barroco: ele é um assombroso
encontro entre razão e emoção. Vejam Leibniz, filósofo barroco por excelência.
Escreveu De arte combinatoria, criou o cálculo diferencial
e integral, inventou uma máquina de calcular e, no entanto, além de
ser grande metafísico, pertencia à confraria de Rosa-Cruz.
Vejam Pascal. Padre barroco metafísico e inventor
do pré-computador. Vejam o fascinante jesuíta Athanasius Kircher. Esotérico, sim;
cultor da cabala, sim; mas com obras científicas sobre acústica, hieroglifos,
a luz e a sombra. Portanto, creiam-me, Barroco é luz e sombra, razão e emoção,
matemática e numerologia. Ou melhor, Barroco é matemágica.
O que fazer, então, de João Cabral, que vivem nomeando
de construtivista e que publicou um livro de poesia chamado O engenheiro ?
Eu lhes digo. Há quem diga que a palavra engenheiro
teve sua origem na época barroca e sua utilização se deve ao matemático francês
Sebastian Caus. Pertencendo ou não a Caus, o fato é que o termo engenheiro
entra em maior circulação nesse período, e é assim que a figura de Vulcano - deus
do fogo, da indústria e das artes metalúrgicas nos é apresentado nessa época
como o engenheiro maior dos deuses.
Então, confiram isto com o poema O ferrageiro
de Carmona onde Cabral, como um neoparnasiano bilacquiano, faz o louvor à
forja do poeta ferreiro. Então, consideremos o que é a arte do silogismo no período
barroco (existiam 256 tipos de silogismos) e constatem como silogisticamente Cabral
constrói seus poemas.
Claro que, como Graciliano, ele usa sempre
as mesmas vinte palavras e é capaz de fazer o poema Uma faca
só lâmina girar em torno de três palavras - faca-bala-relógio, naquilo
que ele chama de serventia de idéias fixas.
Mas não é isto o que faziam os poetas conceitistas
barrocos? Gregório de Mattos faz todo um soneto a partir desse jogo inicial: O
todo sem a parte não é todo, / a parte sem o todo não é parte. / Mas se a parte
faz o todo, sendo parte, / não se diga que é parte, sendo todo. E o frei Antônio
das Chagas girando em torno das sempre mesmas palavras, num soneto dizia: Deus
pede estrita conta de meu tempo. / Forçoso de meu tempo é já dar conta. / Mas
como dar sem tempo tanta conta / eu que gastei sem conta tanto tempo. /
Para ter as minhas contas feita a tempo / dado me foi tempo e não fiz conta.
/ Não quis sobrando tempo fazer conta, / hoje quero fazer conta e falta tempo.
/ Oh, vós que tendes tempo sem ter conta / não gasteis o vosso tempo
em passatempo, / cuidai enquanto é tempo em fazer conta. / Mas, ah! se os que
contam com seu tempo, / fizessem desse tempo alguma conta, / não chorariam como
eu o não ter tempo.
Tomemos, de Cabral, Generaciones y semblanzas.
Dividido em quatro blocos é um texto conceitista sobre a temática barroca do ser
& parecer, do dentro e do fora. A primeira parte começa assim: Há gente
para quem / tanto faz dentro e fora / e por isso procura / viver fora de portas.
A segunda parte, assim: Há gente que se aquece / por dentro, e há em troca
/ pessoas que preferem / aquecer-se por fora. A terceira parte, assim: Há
gente que se gasta / de dentro para fora, / e há gente que prefere / gastar-se
no que choca. E a quarta parte: Há gente que se infiltra / dentro
de outra, / e aí mora, / vivendo do que filtra, / sem voltar para fora. Jogando
o tempo todo com antíteses, as quatro partes do poema são, barrocamente, fugas
e contrapontos. Fugas e contrapontos que reaparecem pela sua obra afora como em
Estudos para uma bailadora andaluza. Em Cabral, a partitura poética
em fuga e contraponto, chega a converter-se na elipse, figura axial
barroca, como no poema De um avião descrevendo Recife a partir da espiral
ascendente do avião.
É reincidente o barroquismo cabralino. Alusivamente,
ele se apropria até da temática do triunfo da morte, da dança macabra
em Morte e vida severina e na descrição dos cemitérios pernambucanos
. É um memento mori social. De igual modo, sua estética magra que
condena a crosta viscosa, resto de janta abaianada , relembra o seu
oposto, Jorge Amado, que em Dona Flor e seus dois maridos dizia:
Deus é gordo.
A severina estética da magreza é melhor do
que a estética do gordo? Na vida e no Barroco, jejum e obesidade, Rubens
e El Greco se complementam. O pernambucano Gilberto Freyre faz uma sociologia
gorda. Da máquina do poema há que brotar a flor. À flauta seca de Anfion
some-se a flauta orgânica de Orfeu. No mundo quantitativamente construído como
um museu de tudo há que metafisicamente descortinar o que lhe falta
- o museu do nada.
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