Introduziu-se na poesia brasileira há algumas décadas a síndrome
do lirismo envergonhado. É uma coisa assás estranha, porque isto
não existe no resto da poesia latino-americana. Também não
existe na poesia norte-americana, muito menos na francesa, espanhola, italiana
e tantas outras que conhecemos.
É uma coisa bem brasileira. Recente. E daninha. Isto não ocorre
com nossa ficção. Quando um jovem contista ou romancista surge,
não há uma sentinela nos portões da cidadela literária
revistando-lhe as roupas e os pertences imaginários exigindo que tem
que usar um uniforme; nem ninguém a lhe advertir: o romance já
era, personagem não se usa mais, não faça mais diálogos,
esqueça peripécias e descrições da consciência
ou da vida rural e urbana, trate de inventar palavras, tente ser hermético,
use e abuse de fragmentações, enfim, seja o mais chato e pretensioso
que puder.
Se olharmos a ficção brasileira que surge por aí, veremos
que os bons autores estão interessados na limpeza do texto, em expurgar
lugares comuns, em retratar o pasmo e a perplexidade diante do caos erótico
violento e social ou, então, estão recuperando detalhes de vivências,
aspectos singulares percebidos pela consciência, reinventando a história
e os espaços simbólicos de nossa formação. Em síntese,
por mais sofisticados que sejam, são tão contadores de estórias
quanto os antigos narradores.
Enfim, na prosa, a patrulha não existe.
Mas na poesia isto já dura quase cinqüenta anos. Primeiro inventaram
que o verso não existia mais, que a métrica não existia
mais, que a rima não existia mais. Poesia tinha mais a ver com artes
plásticas, que com a literatura. Poeta de verdade era quem era poeta
experimental - categoria meio confusa, porque muitos estavam experimentando
coisas que haviam sido experimentadas há muito, sendo que algumas delas
não deram certo. Pregavam que o espaço em branco é que
era o forte do poema. Aí abominaram o poema longo e narrativo e partiram
para o elogio do epigramático, o hai-kai, o jeu d'esprit . Exercitavam,
por outro lado, a dispersão das palavras na página. Quanto mais
quebrado e fragmentado o texto mais avançado. Enfim, era proibido fazer
qualquer poema que lembrasse visualmente o que se entendia como poema. O poema
era feito de fora para dentro e o que tinha que estar dentro acabava ficando
de fora.
Decretou-se que o lirismo havia acabado. Pior, era algo condenável.
Somou-se a isto a noção de que a melhor poesia era a erudita,
a que trazia citações, intertextualidades, a que dialogava para
dentro da literatura e não com o público. Então a poesia
que, em si, já é uma linguagem diferente e especial, passou a
ser intransitável. Para ficar apenas em exemplos recentes, não
mais poemas como aqueles de Bandeira, tão sedutores e claros. Não
mais poemas como aqueles de Drummond, densos e expondo nossas perplexidades.
Não mais poemas como os de Cecília transitando por imponderáveis
realidades. Mal entendendo algumas obsessões de João Cabral, que
apesar de um ou outro equívoco teórico foi um poeta excepcional,
de tanto se envergonharem do lirismo, acabaram por trocar a poesia pela prosa,
como se estivessem criando um velho gênero chamado "proesia".
Enfim, estabeleceu-se um falso dilema na poesia brasileira, como se o "canto"
e a "palavra" fossem duas instâncias incompatíveis, como
se tivessem que optar entre o "vate" enquanto "possesso"
e o "poeta" enquanto "inventor". Ao invés de somar
essas duas vertentes, subtraíram . Ou, em outros termos, como se a intuição
e a dedução, como se o pensamento mágico e o pensamento
lógico, enfim, como se a elaboração e a construção
de um poema não se socorressem de elementos inconscientes e conscientes.
Enfim, dentro dessa visão esquizo da realidade, era como se devêssemos
prescindir de Vinicius de Moraes e ficar só com João Cabral. Como
se só os dois primeiros livros de Drummond, por serem mais secos, fossem
sua boa e melhor poesia, ignorando que o poeta desenvolveu um projeto ao invés
de ficar rodando, num círculo vicioso, como um cão ao redor do
próprio rabo. Daí, criou-se um tipo de poesia onde não
se notam vozes individuais, tons singulares de linguagem. Enfim, o neoparnasianismo
disfarçado de experimentalismo.
Na relação com a poesia internacional estabeleceu-se uma situação
anômala, um preconceito semelhante. Diante desse novo credo 99,99% da
poesia podiam ser jogadas no lixo, porque não era construtivista, experimental,
não fazia pesquisa de linguagem. Nesse lixo estariam não só
Whitman, Hugo, Po-Chui, Li-Po, Petrarca, Pessoa, Lorca, Eliot, Baudelaire, Neruda,
Sandburg, Frost, Aragon, Brecht, Apollinaire, Eluard, Puskin, Pasternak, Nazim
Hickmet, Rilke, mas também 450 anos de poesia brasileira.
Com isto, simultaneamente, introduziu-se em nossa poesia um outro mal-entendido.
Tendo se interditado de escrever a sua autêntica poesia, de expor sem
preconceito o que há de mais legítimo no lirismo, poetas começaram
a traduzir obras de poetas de ontem, praticando no verso de outrem e no lirismo
de outrora, a poesia que se proíbem a si mesmos na modernidade. É
a síndrome do ventríloquo.
De repente, espalhou-se que o bom poeta contemporâneo era aquele que
traduzia outros poetas, sobretudo de outras épocas. É uma situação
psicanaliticamente explicável: a libido interditada aqui transborda ali.
Houve uma transferência, uma perversa metonímia. E o lirismo envergonhado
e camuflado foi fazendo carreira, seduzindo, tanto mais quanto mais línguas
o poeta era capaz de traduzir, ou melhor, quantas mais máscaras era capaz
de usar para murmurar sua voz proibida.
Esse fenômeno, melhor diria, esse equívoco foi essencialmente
brasileiro. Felizmente muitos poetas perceberam o beco sem saída em que
se meteram. Alguns, no entanto, ainda continuam enredados naquele discurso,
e apartados do real e do simbólico de sua comunidade, produzem uma poesia
que gagueja e se enrola na própria língua.
(17 de Maio de 2003)
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