- O que é necessário para uma pessoa vir a ser escritor?
Pergunta simples. Resposta complexa.
Clarice Lispector no fabuloso "A maçã no escuro" nos
diz algo a respeito. Algo, não, muito, a respeito disto. E ter a coragem
e a competência para ler, mastigar, ruminar esse manual da escrita e da
vida que é esse livro, é já um teste para quem se pensa
escritor. Verdade é que o bom leitor, o que não quer necessariamente
ser escritor, mas se escreve e se inscreve nos livros alheios, esse, vai ter
também aí a prova de suas habilidades.
- O que nos diz Clarice?
Mais ou menos no meio do romance, o personagem Martim teve um impulso de escrever.
Esse impulso, esclareça-se, surge numa progressão de descobertas
de sua relação com o mundo: "Como um homem que fecha a porta
e sai, e é domingo. Domingo era o descampado de um homem". Ele já
havia iniciado um aprendizado de observar e interpretar o seu entorno. Principiou
pelo mais simples, pelo mundo mineral e vegetal. Reaprendeu a ver a natureza
dentro e fora de si mesmo: as pedras, os pássaros, as vacas na fazenda.
Já reaprendera a ver as roseiras, as abelhas, as samambaias e a surpreender
a singularidade pungente e alarmante que cada objeto ou criatura tem. Já
se aproximara de seu semelhante, estava descobrindo a mulher e o amor. Portanto,
fora um longo trajeto de reelaboração interior articulado com
a redescoberta do mundo.
Numa noite, dando seqüência a esse percurso de pequenas epifanias,
ele teve estranha necessidade de escrever: "Nessa noite, pois, ele acendeu
a lamparina, pôs os óculos, pegou uma folha de papel, um lápis;
e como um escolar sentou-se na cama. Tivera a sensata idéia de por ordem
nos pensamentos e resumir os resultados a que chegara nessa tarde- uma vez que
nessa tarde ele finalmente entendera o que queria. E agora, assim como aprendera
a calcular com números, dispôs-se a calcular com palavras".
Martim, no entanto, começa a ter algumas surpresas e dificuldades: "Ele
não sabia que para escrever era preciso começar por se abster
da força e apresentar-se à tarefa como quem nada quer". Surge,
então, uma série de pequenos desconfortos até físicos
que os criadores sentem nessa circunstância. Alguns, na hora de escrever,
começam a se distrair involuntariamente. Resolvem dar um telefonema.
Levantam-se para ir pegar água na geladeira. E querendo e precisando
escrever, mas disfarçando a necessidade, começam a arrumar objetos
que os cercam.
Como todo ato de criar, escrever( às vezes, até mesmo uma simples
carta, relatório ou trabalho escolar), é colocar-se na borda do
abismo. Martim "hesitava e mordia a ponta do lápis (
)de novo
revirou o lápis, duvidava e de novo duvidava, com um respeito inesperado
pela palavra escrita. Parecia-lhe que aquilo que lançasse no papel ficaria
definitivo, ele não teve o desplante de rabiscar a primeira palavra.
Tinha a impressão defensiva de que, mal escrevesse a primeira palavra
e seria tarde demais".
Ler Clarice, minhas amigas e amigos, é uma das angustiantes e deliciosas
responsabilidades da vida intelectual. Lamento não poder reencenar aqui
a densidade verbal do que ela segue narrando naquele livro. Seu personagem segue
sofrendo para encontrar seu canal de expressão: "tudo o que lhe
parecera pronto a ser dito evaporava-se, agora que ele queria dizê-lo".
E "de repente se sentiu singelamente acanhado diante do papel branco como
se sua tarefa não fosse apenas a de anotar o que já existia mas
a de criar algo a existir".
Em meio às dificuldades em realizar algo que anteriormente lhe parecera
tão simples, indaga-se o personagem se "teria havido um erro no
modo como ele se sentara na cama ou talvez no modo de segurar o lápis,
um erro que o depusera diante de uma dificuldade maior do que ele merecera ou
aspirava? Ele mais parecia estar esperando que alguma coisa lhe fosse dada do
que dele próprio fosse sair alguma coisa, e então penosamente
esperava". Enfim, ajeitando e reajeitando-se física e animicamente,
"como um dócil analfabeto estava na situação de pedir
a alguém: escreva uma carta para minha mãe dizendo o que penso.
'Afinal que é que está acontecendo?' Inquietou-se de repente.
Pegara no lápis com a modesta intenção de anotar seus pensamentos
para que se tornassem mais claros, fora apenas isso que pretendera! Reivindicou
irritado, e não merecia tanta dificuldade".
E a autora vai enfatizando aqui e ali- "desolado, ele provocara a grande
solidão. E como um velho que não aprendeu a ler ele mediu a distância
que o separava da palavra". Surge, então, dentro do texto de Clarice,
a observação mais simples e aterradora em relação
ao gesto da escrita: "-Que esperava com a mão pronta? Pois tinha
uma experiência, tinha um lápis e um papel, tinha a intenção
e o desejo- ninguém nunca teve mais que isto".
Um lápis e um papel . E a tremenda solidão e responsabilidade.
O abismo. Abismo onde se perder e se reencontrar. Onde outros se perdem e se
reencontram através da escrita alheia.
O romance de Clarice é uma alegoria não só sobre o processo
de criação e recriação do indivíduo, mas
uma alusão à trajetória de qualquer criatura que queira
assumir o embate e a alteridade entre o eu e o outro, entre o eu e o mundo.
O leitor visceralmente leitor, que não escritor explícito, aprenderá
aí a fazer uma releitura de seu espanto e perplexidade diante da vida.
E quem é escritor, quem carece não apenas de embarcar e viajar
nas palavras alheias, mas de construir, elaborar o seu próprio discurso,
esse encontrará aí pistas e trilhas, mas sobretudo o consolo de
descobrir essa realidade que funciona como desafio: um lápis e uma folha
em branco- nunca ninguém teve mais do que isto.
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