A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Gaspar

(J. Padilha)

Havia uns 2 dias que não comia nada... até que não era muito, mas já começava a incomodar. Deveria ter aproveitado melhor o que caiu do caminhão de lixo, mas aqueles caras correndo, aquela barulheira... muita movimentação para o meu gosto. Aproveitei o pouco que pude e ganhei novo rumo.

Agora estou aqui neste mar de pernas e passos e sons e tudo o que me interessa- além de comer, é claro - é conseguir chegar do outro lado. É que tem uma caixa no chão que pode conter algo interessante. Encho-me então da coragem que só a fome proporciona e começo a atravessar a multidão. A primeira estratégia de andar cuidadosamente é logo substituída pela corrida desenfreada entre milhares de pés que tropeçam, pulam, chutam numa sofreguidão de chegar maior do que a minha, mas não pelo mesmo motivo. Às 18hs é invariavelmente impossível chegar de um ponto ao outro na estação da carioca sem algum dano corporal. Obtenho sucesso, após receber alguns chutes, obviamente. A caixa está vazia e eu também, de ideias. Acontece que minha corajosa travessia chama a atenção de uma linda mulher que pára e, com se congelada, me encara. Aproximo-me (também não resisto ao encantamento do olhar) e me ponho imóvel esperando sua ação. Esta que vem em forma de afago, tão bom quanto um abraço. Deixo-me acariciar sem compromisso e peço mais - esse é meu problema - mas ela já me deu tudo o que tinha e começa a seguir em frente. Não teria uns biscoitos, salgadinhos, qualquer coisa na bolsa? Não, só amor mesmo. E segue em frente, assim como eu. Quem sabe adiante o que me aguarda na lixeira da lanchonete? Sigo sem olhar para trás. É como se diz: nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres.

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