A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Corredor da arquibancada e ausências

(Bruno Lima Rocha)

O corredor corria debaixo da arquibancada do lado da praça; no meio da tarde, daquelas tardes sem fim onde temos um evento com mais de 30 lutas, o lugar é o vai e vem para os banheiros, a saída parava rua e o caminho para quem já lutou, indo se farta de "porcaria" no caprichado e nada porcalhão carrinho de cachorro quente. Acompanhado de duas crianças, dois guris na verdade, o pai do pugilista assassinado pelos brigadianos (ou pelo brigadiano, porque a instituição jamais vai admitir como sua grande obra a execução de um futuro campeão olímpico) andava de cabeça erguida.

Cruzamos por ele e pairava sobre suas costas um peso enorme. Negro, alto, grande, meio gordo e cara cansada. A foto do campeão estampada no peito, esguio, negro com luvas vermelhas numa estampa sobre a camiseta branca. Camisa barata, dessas de promoção de final de ano. Nada mais brasileiro, nada mais parecido com o boxe brasileiro. Nada mais rio-grandense do que uma bela tarde dominical soleada. Fazia sol, mas a luz era de luto. Cruzar por ele, cinco, seis vezes, era carregar nos ombros a dor da morte; mataram um boxeador, e poderia ser um dos meus, podia ter sido qualquer um daquela centena de adolescentes, de jovens, peleando com as luvas e punhos para desentortar a vida.

A verdade é simples e dura como um sparring. Poderia ser o filho de qualquer um de nós a gritar nos cantos, a quase morrer de enfarto nos corners, a delirar quando vencemos e a querer tomar os golpes no meio da face, desesperados que ficamos quando um guri nosso erra o fundamento que treinou a semana inteira, treinou meia hora antes de subir no quadrilátero, e erra de novo, pelos nervos, pelo medo, pela coragem em excesso.

As horas não passavam e parece que faltava um personagem, faltava alguém, faltavam alguns. Pouca gente viu os porquês. Ninguém viu um cartaz grande, um banner de tamanho gigantesco reivindicando o menino que era o orgulho da cidade e sua equipe de boxe olímpico. Não vimos porque a faixa era pequena. Também não se avistou a um brigadiano sequer no entorno daquele ginásio. Não havia a menor necessidade mesmo. Boa a estrutura, bom o ringue e como todo evento de pugilismo amador mais parece uma quermesse de igreja - daquelas à moda antiga, sem pregação da prosperidade, mas com barraquinhas e doces - não se faz falta segurança alguma.

Também, segurar o que? Primeiro porque nunca mais sai confusão, antigamente saía - na década de '80, por aí, nos anos '90 em todos os eventos de luta - mas agora, é bolo zero, tumulto algum. E, quando o tom de voz sobe, um dos velhos já grita (e por vezes o velho mais velho e que melhor se impõe), e grita com vontade, xingando com gosto, repetindo "não adianta, não adianta!". Talvez por isso não tinha nenhum efetivo da Brigada lá. Talvez em função da vergonha, ou pela ausência de verba para segurança. Paramédicos sim, sem ambulância e socorrista não tem luta e nem sai evento. Mas, brigada é desnecessário.

Era bom evitar os ânimos, afinal, lá todo mundo luta e a metade é torta, sendo que a outra parte vai entortar em breve. E se sai uma vaia contra o arigó de uniforme cáqui ali aparecendo de Charles Bronson? Na média, as mentalidades dali são conservadoras, elogiosas da segurança pública e do "inestimável papel" que os policiais cumprem para "o bem de nossa sociedade". Não, lá não tinha nem porco, nem banner do guri que os porcos mataram e menos ainda o próprio guri, o boxeador que seria campeão olímpico, no mínimo pegaria pódio em Londres, tal como os capixabas e a Adriana.

(Porto Alegre, dezembro de 2012)
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