A Garganta da Serpente
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O universo continua mudo

(Isabela Mendes)

Senhoras e senhores. O show vai começar. Você a conhece? Não, nunca ouvi falar. Uma cantora de cabaré. Nem isso. Esse pardieiro nem isso é. Nem tem essa magia, nem tem essa energia estranha. É apenas um moquifo enfestado de homens feios e desolados. Não existe gente. Mas... silêncio. Ela vai começar a cantar. A boca está borrada, o batom ralo escorre. O microfone apita, num palco improvisado ninguém percebe o cheiro de naftalina daquele vestido de lantejoulas. Lá em baixo todos fingem ser normal, todos querem diversão, todos querem esquecer. Ela também quer esquecer. Quer esquecer as mentiras da vida. E canta a canção mais triste, e chora enquanto canta. Não chora lágrimas, chora embrulhos no estômago. Ela encara todos os bêbados, ela observa a miséria deles. A falta de alma. E tem de admitir que é um deles. Um amor perdido... um erro cometido. Mas para que existe perdão? Mas para que existe pecado? Canta ainda mais melancólica quando se lembra de seu passado. Era uma manhã fria o último dia em que se encontraram. O nariz vermelho, o olho vermelho, era a fumaça, era o vício, era a tristeza. Ela um dia teve pureza no olhar. Ela um dia pensou que soubera amar. Mas amor não acontece por acaso. O amor não é para qualquer um. Da janela do puteiro com sol podia se ver a torre da Igreja, era noite, apenas, mas ela enxergava aquela torre. E todo dia via também a mesma cena, a festa de casamento. Todos os cumprimentos que recebeu o casal, e da janela do puteiro o olhar, ela assistia a tudo. Sem uma lágrima no olhar. Ele a ensinou a perder, ele a ensinou a parar de sentir. Ela não era puta antes. Era uma menina de família. Aquilo que insistiam em chamar de família. Mas era a rua, o perigo, a escuridão da noite, o álcool, a fantasia, o erro... tudo isso a fascinava. Nunca ninguém lhe explicara que o amor fazia perder. Fazia perder o controle, fazia perder os sentidos, fazia perder a noção do tempo. Três anos passam como uma semana santa, uma semana em que dois namorados se esperam pra se ver, passeios na praça, cinema aos domingos, presentes... ela queria mais do amor. Ela queria tudo. E exigia tanto daquele pobre amor novo. Ninguém lhe explicara que o amor espera, que o amor permanece, que o amor continua. Ninguém lhe deu a cor do choro mais sofrido, ninguém soube explicar seu choro colorido. A dor não era só dela. A dor era de todo o mundo. A dor era um mesmo caminho e ela o conhecia bem. Era fácil sofrer, era fácil chorar, era fácil se deixar levar... e os três anos passaram numa súplica, percorrendo todo a vida que se perdeu. As coisas continuam iguais até que turbulentos fatos mudam tudo. A inércia da moça sobre a cidade. Ela pode sentar e mandar em todos. Ela pode querer, ela pode tudo... mas não quer. O silêncio do universo, um diálogo que não ocorre. Que faço da vida? O que a vida fez de mim? As estradas todas se embaralham, as cidades por ela que se explodam. Onde está o sorriso inocente? Onde está a coragem de tudo? Ela pergunta pro imenso universo. E o universo continua mudo.

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