A Garganta da Serpente
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Os Pêlos de Maria Marão

(Arnaldo Massari)

Neta de portugueses - Maria, mulher jovem e portentosa, dona de um corpo esculpido graciosamente sob os côncavos e os convexos da autêntica silhueta feminina, sem ossos ou músculos aparentes, seria a figura da fêmea indiscutível, digna dos maiores anseios e concepções masculinas, não fosse a absurda e quantitativa carga de pêlos - provável consequência de um raro distúrbio hormonal - que tem distribuído pelo seu belo corpo.

No rosto, sobrancelhas encorpadas, buço pronunciado. Nos seios, cabelos ao redor dos mamilos, formando uma espécie de flor. Braços com boa cobertura, até um pouco acima dos cotovelos. As pernas muito cabeludas, além de qualquer extravagante conceito estético e, entre elas, verdadeiramente, algo inusitado: um viço capilar tão exuberante e fartamente abrangente que, ao invés de ser normalmente encaracolado, cai como se fosse um franja, uma pequena cortina.

O seu passar causa às mulheres inveja, seguida do natural desagravo pelo confortante do antiestético desconto. Aos homens, desejo agudo de posse, apenas refreado pelos questionáveis pêlos e, talvez, no previsível do sempre temido.

Idas e vindas, destino traçado, olhares coincidentes, simpatia mais ainda. Maria e Aristeu trocam as primeiras palavras.

Aristeu, rapaz moderno, libido no ápice, não é, podendo-se assim dizer, um macho de carteirinha. A sua cabeça de sexo sempre bailou entre o hétero e o homo, sem, no entanto, nunca haver arriscado pôr-se de costas. É apenas um simpatizante enrustido aos tatos assemelhados. As suas fantasias sexuais o classificassem, talvez, como um peculiar hermafrodito. Na realidade, sempre buscou a sensação sonhadora de possuir e ser possuído, ao mesmo tempo, numa relação a dois. Viu no seu novo relacionamento o chegar bem perto da sua realidade e desejo tão singular. Olhava Maria como uma esplendorosa fêmea e um vigoroso male. Complicado.

Passam os meses, juntos ficam e vivem. Aristeu sente-se feliz, pois saiu do vestíbulo da sua ansiedade sexual, para uma realidade que agora o faz realizado. Maria, apesar de zero bala em sexo, adapta-se com grande desenvoltura e, no transcorrer do entre urros e gemidos, da boca seca aos olhos semivirados, estranha apenas um pouco as inversões de papel que a deixam um tanto quanto confusa.

Aristeu só pensa em fazer o isso e o aquilo. Explora e permite ser explorado por aquele corpo feminino incontestável. Busca por novidades e, completamente embevecido, começa a se avizinhar do ciúme.

Louvando-se em uma das suas ideias bizarras e acossado pelo receio de uma traição, resolve, sob um pedido delicado e convincente, que Maria lhe permitisse cachear a franja que ela ostenta entre as pernas. E assim foi feito. Com a perícia de um profissional em cabelos, pacientemente, Aristeu cumpre um singular penteado e, para adornar, usando coloridas e pequeninas contas.

No cada despir de Maria, os olhos de Aristeu, num imediato fixar, confere o estado e o alinhamento daquilo que fez com tamanho desvelo, quase adoração. Regozija-se intimamente ao ver que a sua obra de coiffeur não foi tocada. Nem sequer de leve.

Mas Maria não é merecedora dessa desconfiança, pois a sua vida é do trabalho para casa, e assim, diariamente. Metrô apertado, aquele empurra-empurra, bafos no pescoço e, de quando em vez, protuberâncias que, para ela, mulher fiel, incomodam. Mas não houve jeito. Um belo dia, no seu regresso para casa em um vagão repleto de pessoas, sente-se patolada, demoradamente, por uma mão atrevida. Quanto mais luta para sair daquela posição, mais fica a certeza de que o seu penteado sofre pesados danos.

Chegando em casa, defronte ao espelho, Maria ainda tenta ajeitar o belo e intrincado trabalho do Aristeu. Só faz piorar.

Constatação! Por mais que explique, não consegue conter o choro e a ira do seu companheiro. No entanto, essa revolta aparente traz para o íntimo do Aristeu um chamamento irretorquível para bandear-se definitivamente para o homo. Não dá outra. Num daqueles seguidos anoiteceres, Maria, chegando em casa, depara-se com o Aristeu sendo possuído sonoramente. Aos berros. Choque para ela, verdadeiro pavor.

Volta imediata para a casa dos pais, deixando tudo para trás. Espírito novo, vontade imensa de somar ao seu formidável corpo, os estéticos dos tratamentos embelezadores modernos. Depilações generalizadas e ensejos do gênero.

Mas a sina de Maria não mudou. Agora, mais atraente do que nunca, não sofre somente os assédios dos homens, mas também de muitas mulheres; e, em cada insinuação, pergunta apavorada para si mesma: - Como pode haver tantos exotismos sexuais?

- O que Maria ainda não conseguiu ver é que a sua beleza física esplendorosa e o seu recato natural - predicados raros na atualidade - fazem-na ímpar em convite para o sexo.

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