A Garganta da Serpente

Sônia Cardoso

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Auto das dores

Inda noite, deixa os filhos na única cama tateando a luz da vela,
que luz elétrica, só daqui uns cinco anos,
- eles regularizam nossos papéis, comadre vai ver-
Rosto lavado, batom nos lábios.
Outra mirada nos filhos, adormecidos .
Vela apagada, porta do barraco bem fechada.
- Senhor cuide de minhas crianças mais este dia.
Pelos degraus de pedras, quase a correr, lá vai mais
uma Maria, esta que sempre lembra que...
- Mãe acertou em cheio poderia ser Maria do Rocio,
Maria Rita, Maria Helena como as várias que conhece,
mas não, mãe que do babado entendia bem mandou, bota aí
Maria das dores.
E de Maria e de dores,vai se cumprindo a sina.
Sétima filha num renque de dez crianças, metade anjinhos
que subiram para as hostes divinas antes do primeiro ano de
vida, também ela, mãe aos catorze, aos vinte com dois filhos
vivos, dois mortos,companheiro cumprindo pena, na
Frei Caneca, das Dores vai empurrando a vida.
Na segunda-feira dorme mais, limpa o barraco, lava roupa
acorda com os resmungos e beijinhos, da linda Greice que na
inocência de seus quatro anos, adora dormir entre a mãe e o
irmão Michel que aos seis anos, já rateia.
- Ô mãe vê se consegue pelo menos uma cama só pra mim,
não gosto de dormir com você e a Greice, ela joga as pernas
em cima de mim à noite toda.
- Meu Deus! Preciso de mais uma casa para limpar.
De terça a sábado, a mesma rotina, deixar os filhos sozinhos,
sair quase a correr pelos becos da favela, até chegar ao asfalto
e mesmo que seja pendurada, seguir aos trancos e barrancos, dentro
da primeira condução, até a cidade, de lá, caminhar mais um eito, até
as casas dos bacanas na zona sul, deixar tudo limpo, até as cinco horas
para chegar as sete no barraco falar rapidamente com a Rocio, vizinha
generosa que, leva e traz da escolinha os filhos de das Dores, junto com
sua Carolayne.
Hoje segue célere, como sempre, para casa, vai feliz, carrega no sutiã
o pagamento das faxinas da semana. Gastou um pouco no mercado, leva
franco, salsicha e pão, um creme cheiroso para pentear os cabelos de Greice,
sorri ao lembrar dos cachos longos e lindos da menina, leva também um
sabonete chique,na caixinha bonita, presente da patroa, vai dar pra Rocio,
vizinha boa, merece.
Assim que desce do ônibus, o solavanco no peito.
Carros da polícia, homens que correm, as biroscas todas fechadas, os que
desembarcaram com ela da condução tentam desesperados subir os degraus
que levam ao alto do morro, enquanto outros descem correndo, no ar cheiro
forte de pólvora, gritos e tiros, muitos tiros.
- Ô dona, não pode subir, quer morrer?
- Meus filhos estão lá, sozinhos, vou subir para buscar eles.
- Não vai porra nenhuma, vai descendo.
Das Dores grita, esperneia desesperada, ouve muitos gritos, o braço que a
segura amolece quando uma pedra é atirada por alguém que ela não vê entre
as lágrimas, atingido no ombro o soldado arqueja e a larga, um sargento com
uma escopeta na mão, grita - Deixa, deixa subir que foda-se.
- Vai negona, vai dane-se.
As pernas de das Dores doem moles, ela soluça alto, mãos machucadas ela
praticamente arrasta-se nos últimos degraus.
Reconhece um rapagão seu vizinho, que carrega o pai doente, atrás sua
mulher e os dois filhos correm.- Viu minhas crianças? O menino responde.
- Estão ai para trás com dona Rocio. Das Dores percebe que perdeu um
sapato, joga o outro fora, enxergando um casal que corre carregando
crianças.
- Rocio, pelo amor de Deus cadê meus filhos?
- Vem das Dores, as crianças estão aqui.
- O marido de Rocio tem Greice no colo, olhos enormes e soluços doloridos
- Vamos as duas continuem a descer, depois conversam.
Agarrada a mão de Michel, descalça, toda descabelada, o coração saindo
pela boca, das Dores reza uma algaravia que pretende ser um agradecimento
a Deus por suas crianças e para ter forças para chegar ao asfalto.
Os tiros longe e esparsos agora, no frescor da madrugada com os dois filhos
agarrados a seu corpo, das Dores tem os olhos secos, não adianta chorar.
Ela e Rocio se olham, sorriem e depois riem como loucas - Onde estão seus
sapatos?
- Perdi um joguei o outro.
- Droga fiz uma janta tão boa...
- Trouxe alguma coisa pras crianças comerem?
- Como Tião? Só lembrei do colchonete, sabia que passaríamos a noite ao
relento.
- Mãe, podemos comer, então essas salsichas e pão?
- Claro meu filho, você pegou a sacola, ainda bem, nem lembrei mais dela.
- Peguei claro, sabia que comeríamos fora hoje.


(Sônia Cardoso)


voltar última atualização: 23/07/2007
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