Assombrado
Era noite
eu já sabia:
o vento entrava de viés
pelas frestas da janela
em hermética cumplicidade
com o silêncio das ruas.
Já era inverno
eu sabia:
pelas mesmas frestas via
todas as janelas fechadas
do edifício à frente -
fronte da minha solidão.
(Há dias sentia
a água mais gelada
a cama mais gelada
o dia mais urgente...)
Perdi no final do verão
a nave da migração...
quem teve passagem, passou.
Perdi o vento do outono
na curva fechada das dúvidas -
quem teve asas e certezas, voou.
Eu fiquei. Estanquei
a carne roxeada
equilibrando-se na lâmina...
fino fio cortando, perfurando o tempo.
Eu fiquei. Permaneci
na paisagem inconsolada...
não há enfeite natural que resista
à estação branca e nua:
frutos de cera e flores de plástico
pontificadas de dejetos
de insetos volantes
(moscas domesticadas
que não polinizam esperanças
nem prenunciam floradas).
Desfaço, porém, o abandono permanente
e me satisfaço povoando-me:
afogo a sede na fonte de Baco
agora engarrafada e passeio
de mãos dadas com Drummond
entre as impurezas do branco
no concreto mundo da poesia
enquanto Mozart me aquece
no calor das claves de sol.
(Sidnei Olivio)
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