A Garganta da Serpente

Friedrich von Schiller

Johann Christoph Friedrich von Schiller
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CASSANDRA

A alegria enchia os átrios de Tróia,
Antes de a grande cidadela cair,
Por todo lado, soavam hinos de júbilo,
Em cordas de ouro a luzir.
As mãos de todos repousam, cansadas,
Após a lacrimosa contenda,
Porque o Pélida glorioso a bela filha
De Príamo pede em casamento .

E, coroada de loureiros tenros,
Em festa a multidão se agrupa,
Para os templos se encaminha,
No altar do Timbreu se ajunta.
Num abafado torpor, nas vielas,
Espalha-se a báquica alegria,
E, no abandono da sua dor,
Apenas um coração triste surgia.

Sem alegria, na abundância alegre,
Votada ao desamparo e só,
Em silêncio, vagueava Cassandra,
Nos bosques de loureiros de Apolo.
Nas profundezas mais obscuras
Procurava refúgio a vidente
E, tirando a faixa de sacerdotisa,
Irada, exclamou, veemente:

"A todos se abrem as portas da alegria,
Todos os corações são abençoados,
E os pais venerandos esperam
A minha irmã, de noiva, adornada,
Só eu tenho de me penar sozinha,
Pois de mim se aparta o doce enlevo,
E, a aproximar-se das muralhas,
Vejo a destruição em seu segredo.

Um archote vejo a brilhar,
Mas não na mão de Himeneu,
Para as nuvens se encaminha
Mas não é oferenda ao céu.
Alegres se aprontam os festejos
Mas, num augúrio funesto,
Já escuto a disputa dos deuses
Que os destroem cruelmente.

E das minhas queixas desdenham,
E escarnecem da minha dor,
Só, tenho de levar para os desertos
O meu coração sofredor,
Sendo pelos ditosos evitada
E para os felizes um escárnio!
Severamente me castigaste,
Pítico, tu, malévolo deus!

Para anunciar o teu oráculo,
Por que me enviaste à cidade,
Onde habitam os cegos eternos,
Se tenho o espírito iluminado?
Porque me levaste a ver
O que não me é concedido mudar?
O determinado tem de acontecer,
O temido tem que se aproximar.

De que serve levantar o véu,
Onde a tragédia se ameaça?
A vida vivemo-la no erro,
E o conhecimento é a morte.
Leva, oh!, leva a triste claridade,
Leva de mim o seu brilho sangrento!
Terrível é ser arauto fatal
Do teu conhecimento.

A minha cegueira, dá-ma de novo
E o seu sentido alegre, obscuro.
Não mais cantei canções felizes
Desde a tua voz asseguro.
Deste-me o futuro de presente,
Mas privaste-me do momento,
Levaste-me as horas felizes da vida.
Toma de volta o teu falso presente!

Jamais com as grinaldas nupciais
Os meus fragrantes cabelos coroei,
Desde que, ao desventurado culto,
No teu altar me consagrei.
A minha juventude foi só choro,
E apenas conheci a desilusão,
Cada rude anseio do meu ser
Ruiu no meu sensível coração.

Alegres se preparam os festejos,
Tudo, à minha volta, ama e vive,
Da juventude de alegres prazeres
Resta-me o coração destruído.
Em vão me aparece a Primavera,
Para alegrar a terra festiva.
Para quem a vê, nos seus abismos,
A quem poderá alegrar a Vida!

Felicito a ditosa Políxena,
Com seu o coração ébrio de ilusão,
Pois ao melhor dos Helenos,
Núbil, espera dar a mão.
Orgulhoso, o seu peito eleva-se
O doce anseio quase enlaça
Nem a vós, celestiais, lá em cima,
Ela inveja, em seu abraço.

E também o vi aquele, que o meu
Coração ansioso escolhe .
Iluminados pela chama do amor,
Os seus belos olhares suplicam.
De bom grado partiria com o esposo,
Para o calor da minha casa,
Mas, à noite, há uma sombra estígea
Que, entre ele e mim, se insinua.

Todos os seus pálidos fantasmas
Me envia Prosérpina ,
Por onde erro, por onde vagueio,
Há espectros que me esperam,
Na juventude de alegres folguedos
Interpelam-me cruelmente,
Num tumulto aterrador,
Nunca posso estar contente.

E vejo brilhar a espada assassina ,
E os olhos da morte brilham,
Nem à direita ou à esquerda,
Posso escapar ao pesadelo.
Não posso voltar os olhos,
Sabendo e olhando; sem parentes,
Tenho de cumprir o meu destino,
Caindo em terra de outras gentes ".

E ainda se ouvem as suas palavras,
Escuta! Num estrépito confuso,
Lá longe, nas portas do templo,
Jaze morto o grande filho de Tétis!
Éris sacode as serpentes ,
Todos os deuses fogem
E nuvens de trovões abatem-se
Sobre Ílion estrepitosamente.


(Friedrich von Schiller)


voltar última atualização: 01/11/2005
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