A Garganta da Serpente

Rubens da Cunha

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O RANCOR - INÉPCIA TRÁGICA

1

O rancor é assim: próximo do estômago,
aqui, onde o alimento já depois
molda-se nojo: esgoto que levamos

dentro. Torpor de morto que jogado
à indigência mantém-se preso ao verbo
instável da memória: luto fétido.

O rancor é assim: fúria corrosiva
incendiando de câncer as mais vísceras
que somos, as mais ínfimas tarefas

do costume: cardápio de cegueiras
fechado à fome da insônia. O rancor
é assim: doença que nos entreva ao nada.

2

Ter aos dentes o riso terminado
ao meio. O siso arrancado por inépcia.
Hemorragia da raiz ao rancor.

Extrair do maxilar a concreção
do afeto: gengiva infecta. Vazio
de boca que esfuge de si qualquer

resto de beijo: epicentro de busca.
Ressentir-se molar ao mastigar
a solidão incisiva do abandono.

No limiar do descaso, quase à morte,
permitir que se espalhem as devidas
negruras da cárie por sobre a cara.


3

O rancoroso atravessa as pessoas
sem olhar para os lados. Desconhece
as pernas aleijadas de obsessão.

Tampouco, reconhece nas costelas
qualquer resquício de atropelamento.
O rancoroso pouco se lamenta.

Pouco se mostra hábil ao descanso,
pois caminha demasiado no encalço
daquele que o quis vasilhame de ofensas.

Pouco pensa em desistir-se aos escolhos
da indulgência. O rancoroso escolheu
honrar-se à paciência vesga dos trágicos.


4

Dizer aos tornozelos as mazelas
do rancor, mas antes que a boca chegue
aos pés para depositar segredos,

pesar a cada mão os infortúnios
sobrantes do vício. Curvar a espinha
com cuidados de culpado. Talvez

ocorram acidentes no decurso
insidioso de humilhar-se ao chão.
Talvez os entraves do orgulho corram

por entre as vértebras do rancoroso,
que feito de matéria pouca, pouco
pode suster os motes da renúncia.


(Rubens da Cunha)


voltar última atualização: 26/11/2004
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