A Garganta da Serpente

Rodrigo Emanoel Fernandes

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A ENCRUZILHADA DOS MUNDOS

Caminhe comigo, chérie.
Segure minha mão.
Não tenha medo.
Nenhum mal te acontecerá,
enquanto estiver comigo.

Sei que sou um mistério pra você,
assim como você é um mistério pra mim.
Mistérios não devem ser desvendados.
Caso contrário a magia se vai.
Morrem os sonhos.
Restando apenas o amor frio.
Sem mistério.
Sem beleza.
Não tente desvendar o mistério.
Não tente compreender.
Apenas aceite o mistério.
Admire a beleza simples e pura.
Caminhe comigo.

Segure minha mão, chérie.
Há muito para lhe mostrar.
Caminhemos até o bosque.
A noite está linda.
Não pergunte nada.
Perguntas são inúteis.
Não pense para onde nossos passos nos levam.
Isso não é importante.
Não importa para onde vamos.
Importa apenas que estamos andando.
Parar significa morrer...
estando vivo.

Vê as cortinas vermelhas, chérie?
Caminhemos juntos sobre a relva fria.
Vejamos o que há atrás delas.
Não tenha medo.
Estou segurando a sua mão.

Em algum lugar,
talvez longe, talvez perto,
ouve-se o agourento pio de uma coruja.
Um lobo uiva!
Sei como ele se sente.

Com um gesto elegante,
afasto as cortinas, abrindo passagem.
Venha comigo, chérie.
Vamos juntos para o outro lado.
Caminhemos juntos sobre o reluzente piso.
Exploremos esses intermináveis corredores,
que comunicam-se e interligam-se caoticamente,
ladeados por infinitas cortinas vermelhas,
que escondem passagens e portais,
para todos os mundos possíveis e impossíveis.
Esta é a Encruzilhada dos Mundos, chérie.
Este é meu lar.
Seja bem vinda.

Caminhemos, chérie.
Deixemos que nossos passos ressoem nos corredores.
Dez passos à frente,
aqui viramos à esquerda,
mais cinco passos,
seguiremos agora para a direita.
As cortinas estão em toda parte.
Quer espiar as passagens atrás delas?
Não tenha medo.
Estou segurando a sua mão.

Erguerei algumas cortinas enquanto caminhamos,
permitindo-lhe vislumbrar os outros mundos.
Aqui podemos ver ampla e resplandecente planície,
onde deuses a muito desaparecidos combatem entre si,
sob o olhar severo de um guerreiro albino
que seria insignificante diante deles
não fosse sua espada mágica, sorvedora de almas.
Ele é Elric, último dos príncipes de Melniboné,
que ignorava quão trágico era o destino
que trazia dentro de si.

Mais adiante vemos um amplo salão,
onde centenas de mascarados silenciam bruscamente,
ante as batidas ritmadas de um grande relógio de ébano,
anunciando a chegada da Morte Rubra.

Há também uma taverna da Idade Média,
freqüentada por embriagados orcs,
de estatura média, narizes aduncos e dentes animalescos.
Numa mesa de jogo um desentendimento gera uma discussão
que termina em sangue negro como piche
e órgãos quentes devorados com volúpia.

Mais alguns passos e surpreendemos um palhaço de gorro azul,
fuçando avidamente uma lata de lixo num beco escuro.
Ele segura na mão direita um canivete enferrujado,
com o qual, às vezes, faz uma breve pausa
para espremer as espinhas do rosto seco.

Aqui flagramos o exato momento
em que um grupo de heróis, cavalgando cavalos mágicos,
lança-se no vazio, além do abismo,
cavalgando pelos céus,
deixando um rastro de fogo ao passar.

Ah... veja! Isso é curioso!
Uma galáxia distante entrando em colapso,
vítima de irreversível entropia.
Se olhar com atenção, verá que está contida
em um vidro de conserva
que um senhor idoso guarda num armário debaixo da escada.
Um velho cego, argentino,
que compreende a magia dos dias de hoje.

Mais poderosa é a magia dos tempos antigos,
quando a Grande Raça habitava nosso mundo.
Observe seus fantásticos corpos cônicos,
seus tentáculos sedosos e maleáveis.
Não tenha medo, eles não nos podem ver.
São sombras perdidas no tempo.
Um dia retornarão.

Não, chérie! Não largue minha mão!
Não tente embrenhar-se sozinha por esses corredores.
Acaso lembras por qual cortina entrou?
Acaso sabes a passagem que leva ao teu mundo?
Acaso achas que teu mundo é mais real do que estes?
Segure minha mão e a levarei de volta.
No caminho há mais para ver.

Como o lago sinistro, habitado por abjeta criatura,
que ama banquetear-se com corações humanos.
Como o anão vestido de vermelho,
que dança e recita complexos enigmas.
Como aquelas duas lindas mulheres, em diáfanos trajes de seda,
descansando preguiçosamente em almofadas de veludo,
unidas por uma fina corrente dourada
que liga tanto seus pulsos quanto suas almas.

Percebe agora, chérie?
O que viu não é nada.
Nesses corredores há infinitos mundos à escolher.
Mas por que eu deveria escolher um, dentre tantos?
Eu escolho a Encruzilhada dos Mundos.
Este é meu reino.

Caminhemos, chérie.
Passemos através das cortinas
e estaremos de volta ao bosque onde começamos.
E é aqui, no bosque, antes de retornarmos à vida "real",
que tu, chérie, deves decidir,
enquanto nossas mãos ainda estão unidas.
Saibas que parte de mim sempre está na Encruzilhada.
Não importa onde eu esteja ou o que eu faça,
estou sempre a um passo dos infinitos mundos.

Tu deves decidir, chérie.
Desejas continuar a segurar minha mão?
Se o fizer, elas se unirão para sempre
e caminharemos juntos pelos infinitos mundos,
através da eternidade.
Há muito para ver, chérie.
Há muito para viver.

Em algum lugar,
tão longe, tão perto,
ouve-se o pio da coruja,
ouve-se o uivo do lobo.
Tu sabes como ele se sente.

(08/06/97)


(Rodrigo Emanoel Fernandes)


voltar última atualização: 09/11/2004
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