A Garganta da Serpente

Nilton Maia

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INVENTÁRIO

Para Áurea Elisa Pereira Valadão,
colega de curso secundário,
assassinada pela Ditadura Militar
na Guerrilha do Araguaia

Hoje eu preciso escrever um poema,
Ainda que fale de crianças abandonadas
Que vejo na porta do restaurante,
Ou do velho surdo-mudo sorridente,
Com quem cruzei numa calçada.
Hoje eu preciso de cada verso desse poema,
Ainda que possa ser, para outros, desnecessário.
Deixai-me, pois, falar de vida,
De mais de cinqüenta já passados,
E que, por vezes, deixei escorrer
Pelos desvãos de tempos insanos.
Convivi com lobos,
Mas mesmo assim sorri
O sorriso da Mona Lisa,
E o mistério permaneceu indecifrado.

A minha geração conseguiu sonhar,
Mas abriu-se o alçapão
E muitos foram imolados,
Para júbilo e glória
Dos sacerdotes do ódio programado,
Em nome de uma nova ordem.
Outros tantos quedaram-se calados,
Espectadores cravados por punhais:
A dor implodindo-os pouco a pouco.
Dos imolados, consegui colher um pouco
Do precioso sangue derramado.
Guardei-o em ânfora de ouro,
Para que tivesse, um dia,
A mesma serventia de um intenso grito
De amor e de esperança.

Escrevo, pois, esse poema.
Porque creio, ainda,
Em nossa real capacidade de buscar,
De alar-se em vôo pleno.


(Nilton Maia)


voltar última atualização: 08/02/2011
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