A Garganta da Serpente

Nilton Maia

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COCO DE RODA

I

Tristeza, a minha,
Sem nenhuma rapadura.
É tanta a amargura:
Fel de boi e pau-pereira.

Tristeza inteira
Como os mares glaciais,
Ou abismos abissais
Sem a luz de todo dia.


II

Essa agonia
De sentir-se entalado.
Troco do amor, já dado,
Não compra nem alfenim.

Digo pra mim:
Acho que é passageira.
Mas, se fica, dói, inteira,
Corta com lâmina fina.


III

É meu destino,
Como a nau catarineta,
Navegar, com incerteza,
Sem avistar o atracadouro.

Como um agouro,
Não ouço o pio da coruja,
Mas de gente se extinguindo
Por tanta bala perdida.


IV

Acho que a vida
Já deixou de ser um jogo,
Pois o dado viciado
Diz quem deve estar por cima.

E quem ensina
Já não é o professor.
Antes, é o aprendiz,
Que acha que sabe tudo.


V

Tornei-me mudo,
Para ver se funcionava.
Mas, esqueci que restavam
Todos os cinco sentidos.

De merecidos,
Cinqüenta e sete e um tanto:
Nesta idade, muito espanto.
Meio fraco é o sabor.


VI

Pouco esplendor
Teve minha caminhada.
Quase sempre foi marcada
Pela espera de algum brilho.

Louco andarilho,
Fui espalhando sementes.
Todas as plantas cresceram:
Poucas deram-me um ramo.


VII

É gesto insano
Deste poeta bissexto:
Tenta parir sentimento,
Pela obra de sua mão.

No grande vão
Destes tempos tão insanos,
Escondendo-se dos outros
Como um tonto eremita.


VIII

Grande desdita
É ter tanto o que dar,
Sendo obrigado a guardar
A lava em pote sem cor.

E, como ator,
Vestir-se do personagem.
Representar, com apuro,
A vida de um sonhador.


IX

Um cantador,
Em sonho, há alguns dias,
Me disse, com ironia:
Rime mesmo sem viola.

Nesta escola,
Quem aprende logo esquece.
Colega, então, não carece,
Pagar tanta penitência.


X

A inclemência
Faz, de mim, cego de feira,
Cujo rumo está contido
Na ponta de uma bengala.

Não vi senzala,
Mas me sinto numa cela.
Sou um bobo, de antolhos,
Num palácio de espelhos.


XI

Vivo o passado,
Sou baú de bugigangas,
Álbum feito de lembranças.
Cheiro a naftalina.

Torpe destino:
Sentir tanto e tanto amar.
Sabendo, sem duvidar,
O que os livros não respondem.


(Nilton Maia)


voltar última atualização: 08/02/2011
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