A Garganta da Serpente

Nícolas Brandão

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indigência

É incrível que minha pele tenha se formado em barro
Que meus sonhos tenham transcorrido o nada
Que o nada seja tudo que me há restado.

É absurdo que se faça o que se faz por aqui.
Que eu tenha nojo e admiração por um mesmo.
Que minhas lágrimas estejam secas
Por não me valer chorar.

Imprescindível seria querer a morte
Que assim, me inteiraria do que é vivo ainda
E escorreria nas folhas vencidas pelo outono,
Não por haverem lutado,
Mas porque é outono e elas devem deixar-se cair.

Porque eu não ligo mais, não quero mais.
Embora também não queira dizer adeus.
Já que não há melhor vida que esta:
Minha pequena mentira, esta minha invenção.

Porque eu odeio a música que fazem os homens
Eu odeio o que metem no silêncio.
Odeio que não saibam silenciar,
e que não sei eu.

Neste triste engano em cobrir as estrelas
Com a fumaça viscosa da nossa afeição.
E falar sobre elas de cachimbo na boca.
Ou nos braços de uma mulher.

Nosso filme caseiro.
Nosso filme de broa e luar desmedido.
Branquíssimo
Estupidamente
Enorme.

Não vale mais nada.
Pro inferno se lá valer

Pro inferno...

E que este me comova e me faça
triste, de novo.

Porque não é tristeza.
É vontade doce de morrer.

Quando apagam a luz e o tudo se vai.
Quando o amor some e toda verdade já não está.

Enquanto nos olham para nunca mais
E nos beijam pra cessar o beijo
E nos abraçam com os braços compridos de solidão
A lua nos olha, Imensa.

Com a verdade que jaz ser branca e estúpida.
Redonda, branca, estupída e tão certa da sua hora
Tão certa da sua função noturna e morte diárias,
Vencida pela inevitabilidade.

E eu estou sozinho de novo
Sozinho nesta massaroca de gente sozinha
Esse shopping center de gente sorrindo sozinha
De gente se unindo sozinha, sem se falar.

Eu sou sozinho de novo
Porque meus sapatos me calçam com preguiça
E me negam seus passos
Porque me querem morto, tragicamente.

Pra viverem a indigência de minhas histórias
Tais que já se vão coibir e murchar
Minhas histórias das que emprestei de alguém,
Alguém muito lúcido e sorridente
E certo das causas últimas do homem.

enquanto eu,
despido de qualquer ambição maior,

recosto a enorme lua em uma concha que faço com as mãos.


(Nícolas Brandão)


voltar última atualização: 24/04/2008
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