A Garganta da Serpente

Lou Bertoni

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AS DUAS

Conheço-as.
São duas e matam-se todos os dias.

Uma, poética e abobalhada
Quase infeliz
Olhando o mundo
Com olhos de nuvem
Olhos que não guardam
Coração que não vinga
Riso que não sai
Gozo que não brota
Como um microfilme
Trancado no cofre
Como uma arma
Que nunca será usada
Carta sem destino
Flecha sem alvo
Nem matéria de jornal
Nem motivo de riso
Apenas fantasias
Mini-projetos
De mulher inodora
Que deixa marinar
Ao invés de acontecer
E debaixo da casca
Está presa então
Por imersão.
É feia esta.

Outra, velha e descrente
Com o coração de uva passa
Silhueta sombria
Trocando chumbo com a vida
Vizinha que ninguém vê
Namorada que ninguém tem
Perversa em pensamentos
Dissolvida em amarga pasta
Ressequida nas pontas
Desmentindo o orvalho
Confirmando o medo
As palavras faladas
Sem paixão
Tão pouco envolvida
Impermeável e áspera
Como tronco rugoso
Como pele de sapo
Banal e solitária
Comendo pudins com as mãos
Vestida de rainha má
Sem olhos
Sem sangue
Incapacitada para pactos
Toda tramada de agulhas.
É mais feia esta do que aquela.

Conheço-as.
São duas metades
De um mesmo inteiro.
São infelicidades penduradas
Que qualquer vento
Qualquer palavra
Qualquer hálito
Há que derrubar.
E quanta beleza poderia ter sido.


(Lou Bertoni)


voltar última atualização: 08/02/2011
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