A Garganta da Serpente

Leandro Duarte

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A Limpidez da Alma

Meu vizinho se acaba em seu Transtorno Obsessivo Compulsivo. O porteiro, embasbacado como sempre, é cardíaco e todos os dias me vejo a achá-lo morto na guarita e eu tendo que pular o portão. O cobrador do ônibus é paraplégico e passos todos os dias por uma roda de mudos no Terminal Central, todos eufóricos e expressivos. Um dos meus professores é esquizofrênico, o resto, não passam de uns retardados ordinários que invejam seus próprios alunos; entre meus colegas de classe temos: homossexuais, drogados, falsos e verdadeiros religiosos, afortunados imbecis, jovens revoltados, e ainda: tímidos, fracos, exibidos, cansados, tristes...
Na igreja, meu padre é castrado, os coroinhas são gays e o dinheiro que escorre voluntariamente dos burros para os FDP, é mais sujo do que o meu rabo.
O taxista é rabugento e grosso, acha que merece o pagamento em dobro. Minha sogra é hipocondríaca e meu cunhado tem o coração mais mole do que o pau do meu avô, sofre de tão cândido e eu sofro junto. Um dos meus melhores amigos sofre do mal-de-não-sei-o-quê o que me causa duzentos pesadelos por noite, um mais trágico e cômico do que o outro.
A esquina da daqui está amontoada de putas e meu cortiço é quase uma boca de fumo. Meu patrão é um câncer ambulante e tem um nariz monstruoso. Meu irmão é forte como um touro e eu, seco como um faquir; minha mãe destrói o Novo com a leitura diária de livros de alto-ajuda e misticismo, quase uma maga branca, quase uma fada esquecida, um anjo que ainda vive e que só peca em tentar decifrar os sonhos; meu pai morreu de Enfisema Pulmonar, e eu fumo vinte cigarros diários; minha vô é diabética e minha mulher era chocólatra.
A lepra já não é tão destrutiva, mas o álcool a cada dia arrebenta mais a nossa raça. Alcoólatra ou Maconheiro? Os dois ou um Santo? A cada passo: uma deformidade exorbitante. A cada ciclo respiratório: um corpo oco que vai ao chão, sem alma, sem fluidos, lotado de micróbios.
Quem quer ser limpo?! O cheiro importa? E o intestino? E o instinto?
Obrigado, mas estou muito bem e acho tudo muito comum: do sadismo ao incompreensível voto de castidade, claro que com uma tendência particular para extraordinário.
Mandaram que eu me calasse, que me limpasse e fosse correto.
Mas eu, realmente, não entendi.


(Leandro Duarte)


voltar última atualização: 08/06/2004
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