A Garganta da Serpente

Karla Izidro

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Feras

Guardo em mim todas as feras enjauladas.
Nasci no rio seco debaixo da lua nova, a criança nasceu calada levou muita porrada mas não abriu a boca .Somente quando o sol nasceu lá no sul ela gritou no norte. A primeira gota em sua boca foi do orvalho da flor de cactos.
Guardo em mim todas as feras escondidas na mata escura a espreita da vida.
Passou pelo ventre de sua mãe sem dor nem grito. Nasceu para a vida escura com o mesmo - sem vontade olhar- como quem olha para o silêncio.
Guardo em mim todas as feras adormecidas a sonhar com o dia.
Sua mãe não gritou, não gemeu , não gozou. A criança feita sem o prazer mamou no peito da mãe de leite coalhado.
Guardo em mim todas as feras no cio.
A criança gritou no silêncio seco e rasgou a garganta com as unhas. Não estava suja de sangue, mas de barro, e o seu grito foi longe penetrando o silêncio da caverna.
Guardo em mim todas as feras do ar , do mar , da terra.
No canto do macho a procura da fêmea, na baleia cantora em seu profundo mar, no grito cantante e cortante de uma pantera, araras no céu a gritar, na abelha rainha matando o zangão e a lágrima silenciosa do carneiro cumprindo seu destino.
Ela foi fecundada entre o azul fogo do fogão e o amarelo fogo da aguardente.
Guardo em mim o quente olhar das feras que olham para o imenso iceberg sem tremer.
Criança trazida por pau de arara, carro de boi, foi mandada para o sul onde o sol nasce mas é frio. Onde concretamente despontam icebergs e os olhares tremem.
Guardo em mim o olhar vermelho da fera observando-me na caverna.
E o olhar da criança vendado em sonhos escondeu por detrás da venda seu brilho. Olhares que não derretem gelo, sinto frio.Apontaram contra você criança um canhão disparando balas, criança com a boca cheia de balas.
Doce criança,
sinto fome,
sinto muito.


(Karla Izidro)


voltar última atualização: 07/04/2006
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