A Garganta da Serpente

Júlio Saraiva

  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

TERCEIRO ATO

no teatro em ruínas
a atriz morta por estrangulamento
há cinquenta anos
dentro do camarim meia hora depois
de terminado o espetáculo
pelo amante chinês
reaparece no palco sem luz
há uma plateia de cera derretendo
                                  [aplausos
mas a atriz com o olhar desesperado
não consegue curvar o corpo para
                                  [agradecer
tenta num gesto inútil livrar-se das
                                  [mãos que
                                  [lhe apertam
                                  [o pescoço de
                                  [porcelana
escorre um suor gelado do seu rosto
                                  [transparente
as tábuas podres do palco começam a ceder
as cortinas também apodrecidas despencam
a plateia de cera não existe mais
a atriz morta por estrangulamento
há cinquenta anos também não existe mais
o amante chinês que a matou
suicidou-se na mesma noite com um tiro
                                  [no ouvido esquerdo
                                  [no quarto de um
                                  [hotel vagabundo
                                  [a duzentos metros
                                  [do local do crime
meio século se passou meio século...
agora sim as tábuas do palco cedem de vez
guinchos esmagam o silêncio
dos escombros surgem dois ratos pardos
que se entreolham e avançam na escuridão
que se entreolham e avançam
e na escuridão disputam com fúria assassina
a última pérola falsa que sobrou do colar
                                  [da atriz


(Júlio Saraiva)


voltar última atualização: 17/05/2010
12111 visitas desde 16/06/2008
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente