A última ceia
às vidas não vividas!
brindo com pulmões orgulhosos
saboreio mais a frase que a bebida
pego em cada palavra com cuidado
(como se a desmamasse)
e afogo-a no copo
bebo com avidez diluvial
arroto a felicidade
as pálpebras beijam-se
eis que da bruma surges
ostentando uma nudez empecadada
(decerto não encomendada aos deuses de um céu míope)
os olhos abrem-se gaguejantes
o vinho escorre-nos entre os lábios dormentes
como um rio que atordoa as margens com o hálito
apago as velas excitadas
o quarto apalaçou-se
o negro do teu abraço demora-se em mim
(dizes que doce como um cilício)
os odores tertuliam-se em redor dos nossos corpos
o incenso envergonhado
o sexo no seu trono palpitante
o medo esguio espiando as entrepernas
inevitável como um vómito
este nosso amor
(de borco como se na casta Meca)
juntos somos uma multidão solitária
reúnem-se ébrios num festim
todos os teus teres
a fome banqueteando-te o corpo
o teu Não sagrado
o teu silêncio obsceno
as certezas empertigadas como muralhas de cinza
os lençóis despenteados
o desejo em escombros
os escombros desejados com querer soldadesco
as órbitas colidentes dos teus braços
a lonjura envenenada do olhar
a saliva cansada
o teu olhar cambaleante
detém-se nos meus dedos
que borboleteando pelo teu peito o ofegam
como o ar anuviado que te arredonda o corpo
sinto os teus dentes sedativos
a mordiscarem o lóbulo de um qualquer pesadelo
de um qualquer meu pesadelo
a língua enristada arpoando-me a orelha
e salivando feitiços sussurrantes:
nada será como dantes
ama-me com o sangue em galope desgovernado
sonha-me como a mãe dos teus suspiros
nada será como dantes verás
se me ofereceres o peso suado do teu corpo
faz-te dardejar pelos meus seios
deixa que te amamentem a mão-concha
verás nada será como dantes
florissem lábios para te cicatrizar as feridas
ai meu amor
e quantas mortes a nossos pés cairiam rendidas
o medo esguio espiando as entrepernas
estou a uma vida de distância
de me tornar a sepultura do teu ir
a uma vida de distância
anos caducos tombam das árvores
escrevo-te cartas agora
vivo atrás do biombo
a lua que me alumia o sono não é a tua
queria ficar
mas o passo amotinou-se
olho a pouca noite que cabe na janela
queiras tu
que o amanhecer te deseje assim
(Hienaqchora)
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