A Garganta da Serpente

Hienaqchora

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memória

ainda o abutre
não tinha morto o seu vôo circular
e já me povoavas com carícias resolutas
apartando-o repugnado

recordas-te
por vingança quis enterrar
os nossos desejos numa vala comum
aquecida pelo nosso hálito mudo
e brando

agora digo-te com a convicção
de quem se perde no próprio corpo
pensava então que o rito do vício
o nutritivo e fulminante vício
bastasse para o eclipse

mas agora vejo
que dás passos vãos e galopantes
sobre a água que engole os teus receios
ensinaste-me tudo o que não sabias
e eu grato apeei-me da vida
como o fumo que cobarde
se esvai de um cigarro
ascese paralela

lembras-te
deixámos a filosofia jazendo mutilada
debaixo dos lençóis e das mesas dos cafés
e fugimos e corremos
de cabelos entrelaçados
de sonhos geminados
buscando desaires fervorosos

da vida em que fomos felizes
já me esqueci
tatuar memórias urge
no meu peito trémulo
devias ter calos nas mãos
(não os tens por mera traição genética)
e uma epiderme cortante e implacável
asseguro-te
recordaria esquartejado as tuas carícias
sempre me disseste
não há melhor memória que o sangue

acredita em mim
se te digo que sou uma floresta negra
acredita em mim
se te confesso que gemo encrostado numa colina
acredita em mim
se te conto que agora troco beijos por lágrimas
e começo as viagens pelo fim

acredita
agora sou como a hiena que ri sorvendo a sua presa
apenas não tenho presa
mas mantenho honrosamente um riso perpétuo de marioneta

vi mil carris de lágrimas ao partir
ouvi gritos de mais amantes ao cair
das mãos escapa-me um néctar arcano e jubilante
que bebo sôfrego quando carrego vacilante
as lajes com que cubro as cidades que num sopro crio
agora as ruas caminham por mim absortas
e as pessoas tecem rumos quase mortas

(amei-te por tradição
esquecer-te-ei por convulsão)

ainda me lembro de ti
vestida com palavras de lascívia
dizias-me que é com corpos corrompidos
que se constrói um lar
mas agora sei
que os desmoronamentos de alma
só fazem ruir
os ímpios olhares que nos trespassam

lembras-te
quando um balançar de corpo bastava
para afogar os séculos
e afastar lamentos espectrais

colhemos juntos frutos intangíveis
de árvores místicas e de porte sumptuoso
lembras-te
dávamo-lhes uma dentada quase edénica
e gentilmente precavíamos
os sacrilégios de um outro mais faminto

lembras-te
quando as palavras se riam de silêncios mal contidos
cada hora estéril segregava um sorriso contundente
traição multípara e resplandecente

lembras-te
do amor que entre nós inventámos
dos opacos olhares que exalámos
dos falsos abraços que trocámos

lembras-te
quando tinhas ainda memória
lembras-te


(Hienaqchora)


voltar última atualização: 11/09/2001
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