A Garganta da Serpente

Francisco Divor

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Lâminas Órficas
 

I

(voto de humildade, dirigido a Eurídice)

Serpente que ligas aos pés

dos deuses o vínculo

do pranto mediador:

Os lábios sopram a flauta

Onde ele nunca tocou
 
 

II

(destinação da personagem)

Com o Senhor dos Mortos e da Vida,

Mago de sereias e serpentes,

Tua fímbria de voz comove os pétreos deuses,

E a regra, archaica, tem fé:

Vai

se

tresvariando como em sonho

Róis o nome proibido sendo humano
 
 

III

(máscara e cenário)

Mestiço

de vivos e

dos imortais,

O mar do meio

da terra incorpora-te e

bem mais que a água bebe do fogo
 
 

IV

(sentença)

Regressa ao sul ardido, vês tua candace ...

Acreditas?

Dívida que faz a dúvida; dúvida

Que faz a pressa. Pressa

Que fez a perda.

Perda que ressuscita o canto
 
 

V

(epílogo)

Meio mortal, meio imortal, meio

Do mar, transitivo, as filhas de Baco

Vieram, rebocou-o para Lesbos

Eurídice, com máscara de rios.

Semeada corola dos pássaros

Da ilha que circula entre os vivos

E os imortais, no mar do meio,

Embala daqueles homens.


(Francisco Divor)

 

[Orfeu: figura mítica de cantor, nascido na Trácia (norte da Grécia e Sul da Bulgária), filho de um rei local e da musa Calíope. Segundo outras versões, seria filho do deus Apolo e de Clio. Tomou parte na expedição dos Argonautas, a qual visava procurar, sempre só por navegação, o velo de ouro, guardado por uma serpente; e terá sido a primeira grande navegação de um herói europeu, cujo rumo levou os argonautas para Oriente. Orfeu também visitou o Egipto. Essas seriam três das culturas que frequentou: a grega da Trácia, a de alguns povos orientais e a dos egípcios.

A sua mulher, por quem estava perdidamente apaixonado, Eurídice, foi mordida por uma serpente e morreu; ele decidiu resgatá-la nos Infernos, ou seja, no mundo subterrâneo onde habitavam os mortos; e tão extraordinariamente cantou lá que, tendo comovido os próprios deuses os convenceu, muito em especial ao senhor dos Mortos, a deixarem-no partir com a esposa de volta à vida; mas não porque a vida de Eurídice lhe fosse dada, pois só lhe seria emprestada. Foi-lhe entregue a esposa, que seguia atrás dele, e ele não podia voltar-se para trás, para vê-la, ou, se o fizesse, o encanto acabava. Não resistindo à tentação da dúvida, quando já estava quase a chegar ao mundo dos vivos e havia, portanto, claridade, olhou para Eurídice para certificar-se de que não fora enganado e, por isso, teve que voltar sozinho à terra, isolando-se nos bosques e cantando a sua dor até que as Bacantes, as discípulas de Baco, mulheres agitadas pelos espíritos e inebriadas por danças e músicas frenéticas, o mataram, esquartejando-o e cortando-lhe a cabeça (segundo outros foi esquartejado pela inveja de Zeus, o Deus dos Deuses); a cabeça foi jogada ao rio tal como os outros pedaços do seu corpo. Primeiro ela, mais tarde os membros, foram recolhidos na Ilha de Lesbos, a mesma de Safo, ilha para onde os levou a correnteza do Hebro, ao qual as bacantes a tinham deitado. A cabeça foi recolhida incorruptível pelas Musas e colocada no santuário do lugar. Os membros, conjuntados, guardaram-se num túmulo no monte Olimpo, a casa divina onde ainda hoje o canto das aves é mais melodioso do que em qualquer outra parte do mundo.

A Orfeu se associam os rituais órficos, que preparavam os iniciados para a passagem pela morte. As lâminas órficas eram pequenas lâminas (sempre que possível de ouro), atadas ao pulso do cadáver, onde se inscreviam passagens desses rituais, a partir de versos pretensamente escritos pelo próprio Orfeu, e que ajudavam a alma do falecido a encontrar o seu caminho no mundo dos espíritos. Foram encontradas lâminas órficas nos mais variados lugares do mediterrâneo antigo, o que demonstra estar o culto bem disseminado nesse tempo. A associação entre os ritos órficos e esta função das "lâminas" reforça a tese do sincretismo entre o mito grego de Orfeu e a sabedoria egípcia, fundada na vida após a morte, religando assim duas das civilizações melhor conhecidas e mais marcantes desse mar que estava situado entre as terras (medio-terrâneo).

As Lâminas órficas eram provavelmente excertos de poemas órficos, ou seja, hinos, sermões ou discursos sagrados, oráculos, testamentos e até remédios, associados aos rituais orfaicos, que se tornariam numa das sínteses superiores desse espaço-tempo que se interligava com a África Oriental e com a Índia, montando redes comerciais que no século XI depois de Cristo ainda vinham da China até à Ilha de Moçambique, rota e sínteses posteriores e aparentadas com outras que o Egipto celebrizou para o mesmo espaço e que irradiaram até à dinastia greco - egípcio - macedônica dos Ptolomeus (v. o culto de Serapis e de Osísirs)].


voltar última atualização: 20/02/2000
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