A Garganta da Serpente

Elcio Domingues

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Cantos de Solidão
Disse-me o avaro:
"A mim, só importa o convívio humano,
Se puder nele urdir os meus planos
De incontida esganação.
Fortes são os elos que me atam às riquezas;
Desprezo a santidade de pobreza,
Sofrimento e humilhação.
Minha misantropia diligente
Concede-me a distância prudente
Dos que planejam me usurpar benesses.
Rejeito a filantropia hipócrita
Que só aos néscios convence
De que, neste mundo de interesses,
É dando que se recebe.
Ter muito mais do que necessito,
Cantar meu canto, rir meu riso...
É minha inquebrantável vocação.
Deixo os pobres e humildes,
De lágrimas fáceis, perturbações e melindres,
À sua comiseração.
Sou feliz por ter demais
E por ter muito sou amado.
A mim, pouco importa,
Se os que alardeiam esse amor
São sinceros ou dissimulados.
"Eu quero e se quero eu posso!",
Digo sempre a mim mesmo,
Pois não há no mundo um só desejo
Que não possa ser comprado.
Para que temer a morte,
Ter pesos na consciência,
Se para todos ela chega,
Dos que secam na miséria,
Aos que nadam na opulência?".

Disse-me o apaixonado:
"Só não sou, pois a tenho ao meu lado.
Minha vida é completa!
Amo a flor mais seleta
Deste jardim memorável!
Sou para ela e ela é para mim
O que não há valor que compense.
Tenho-a em meu coração
E ela tem a mim em sua mente.
Ela é todo o meu sentido,
Essência de minha substância,
Dona de meus íntimos desejos.
Anseio por seus delicados beijos,
Quando me deito, sonho e desperto,
Em nosso suave leito.
Dela quero aspirar o ar,
Sorver a água, pulular seus pensamentos,
Com meu amor criativo.
Porém, se um dia ela partir,
Consumir-me-ei submergido
Na dor mais vil que nos aflige e...
Não tendo decifrado o enigma do adeus,
Destroçado serei pelas garras e presas da esfinge.
Se a tal desventura for condenado,
Que eu retorne ao pó de que um dia fui moldado e
Despeça-me dessa sorte demente,
Para nascer mais uma vez
E encontrá-la, num dia de felicidade rara.
Que nem mesmo a morte separe-nos novamente!".

Disse-me o monge:
"Filho, creia em meu testemunho:
Ao maligno pertence este mundo
E tudo o que nele se vê é vão.
Viver em orações e penitências,
Ter como amiga a paciência,
Eis o que à minha alma anima.
Pura é a minha batina,
Imaculado o meu solidéu.
Persevero, busco o céu,
Luz benigna em minha retina.
Na clausura desta cela internado,
Rogo ao Senhor Venerado,
Pelo homem de espírito cego.
Clamo por Seu obséquio aos insanos pecadores,
Tolos reféns da luxúria e de seus lascivos odores.
Eles não têm na castidade o alento,
Buscam inebriados os momentos
De uma vida febril de vaidades.
Asilado neste sacro mosteiro,
A Ele ofereço de joelhos
Cada segundo de minha vida devotada.
Meu espírito de brancura intocada,
Aos céus adentrará triunfante.
À Sua direita será mais um diamante,
Incrustado eternamente no magnífico manto,
Que aprazível e gentil,
Acolhe apenas os Seus santos".

Disse, então, a mim mesmo:
Não, não serão os apegos às coisas,
Pessoas e pensamentos
Que nos redimirão dos tormentos
Do cálice travoso da solitude.
Só o "amai-vos!" amiúde,
Amenizará nossa dor rude
E aplacará o pavor
Do mais tenebroso esquecimento.


(Elcio Domingues)


voltar última atualização: 26/12/2007
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