A Garganta da Serpente

Elcio Domingues

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"Todos sois flores..."
Uma Flor na Calçada

Hoje, passei por uma flor caída na calçada.
Não a pisei, apesar de distraído pelos desenhos
Das nuvens anãs e velozes,
Que o vento matutino de outono metamorfoseava.
As copas das árvores gigantescas
Eram igualmente interessantes.
Entrei onde se cultuam singelas belezas
E fiquei lá algumas horas,
Com outras poucas pessoas.
Quando fui embora,
Passei por um pássaro-flor inseguro,
De coraçãozinho disparado e na calçada
Desprezado.
Ele estava triste, embora fosse belo,
Porque definhava na aridez do vento.
Vi seus olhinhos lacrimosos de pólen,
Precárias esperanças
De perpetuação de sua espécie.
Acolhi-o em minhas grandes e desajeitadas mãos
E a flor-pássaro veio contente comigo,
Olhando tudo o que por nós passasse;
Curiosa, como são os filhotes de todos os bichos.
Eu caminhava alegre, em nosso passeio-retorno.
Viemos conversando em silêncio.
Corações não têm bocas, nem dentes.
Nosso mútuo toque eram diálogos eloqüentes,
Palma da mão e corola, apenas.
Minha amiga genuína amo-te,
(Pensei, sem também dizer),
Como não seria capaz de amar
Um buquê imenso numa porcelana Ming,
Ou mais rara, ainda.
O que diria então, de amar uma flor desprezada!
Mas a flor-passarinho ensinou-me
Que só as flores desprezadas sabem
Dar e receber amor.
Agora, depois de uns supérfluos curativos,
Que aprendi com quem um dia foi flor,
Ela descansa ali, sobre o aparador,
Numa pequena cama de vidro,
Levemente adocicada.
Jamais conjeturei que
Uma pequena flor desprezada
Pudesse dar e receber tanto afeto.

Ela olha para mim com ternura.
Sabe-me melhor do que eu,
Sem que nada lhe tenha dito
Ou confessado, com minha própria boca.
Ela repousa e se alimenta
Da doçura que lhe dou.
Vai morrer daqui a alguns dias, sabemos,
Mas com um mínimo de dignidade.
E eu...
Olharei eternamente
Com outros olhos,

Todas as flores desprezadas.


(Elcio Domingues)


voltar última atualização: 26/12/2007
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